1.9.15

Tradução da novel Beyond - cap 2


Julgavam que me tinha esquecido? Pois não! Aqui está o segundo capítulo da novel Beyond de No.6, para quem aterrar aqui e não souber do que estou a falar, aqui está o post introdutório: www. Este é bastante centrado na perspectiva de Nezumi, e deu para descobrir uma quantidade abismal de coisas sobre ele, incluindo que ele teve uma irmã mais nova. Já agora, aqui vamos a algumas notas sobre a tradução: 1) para quem não sabe, Karan é também o nome de uma criança de Shion começou a ajudar, não confundam com a mãe dele; 2) Mantive o nome da velha que ajudou Nezumi como Gran, pois é assim que é sempre encontrado na internet, e embora possa ser traduzido como "avó", não é realmente avó dele; 3) Onde virem o asterisco (*), o tipo de música que Nezumi estava a cantar é "Scat", mais aqui» www

NO. 6 ALÉM

Uma música do passado


Nezumi levantou a cabeça. Franziu ligeiramente o cenho.
"O quê? O quê que acabaste de dizer, Shion?"
"Disse que queria ver."
Shion sorveu a água quente na sua tigela. O cubo de açúcar misturado nela fazia-a saber ligeiramente doce. O açúcar era considerado um item de luxo no Bloco Oeste. O próprio Shion já não saboreava a água há algum tempo. 
"Disse que te queria ver a atuar em palco."
"Porquê?"
"Porque, bem... não tenho nenhum motivo em particular. Apenas quero assistir."
Nezumi inclinou o queixo para trás, e fechou o livro que estava a ler com um estalido consideravelmente forte.
"Isso não é resposta. Se estás à procura de algo para passar o tempo, considera outras opções."
"Não tenho tempo livre suficiente para matar. Tenho o meu trabalho a lavar os cães pelo menos duas vezes por semana, e prometi ler livros ilustrados à Karan e ao resto das crianças. Também comecei a trabalhar em part-time com Rikiga-san. Na verdade vou sair agora."
"Um trabalho part-time? Em casa do velho? Espero que não seja algo tão terrivelmente respeitável como tirar fotos de mulheres nuas. "
"Não, eu só vou atender recados e fazer trabalhos variados. Coisas como triagem de recibos e limpar o escritório. Rikiga-san na verdade tem uma variedade muito grande de negócios. Nunca soube."
"Bem, eu aposto que nasceriam asas no me rato e que ele iria voar antes de o velho começar a ter qualquer negócio decente. Hah! É melhor seres cuidadoso, Shion. Quem sabe se alguma mulher não te começará a atacar com uma faca como aquela fez ao Rikiga."
"Não acho que isso seja muito provável," disse Shion ceticamente. "Rikiga-san anda a dizer já há algum tempo que teve que chegue de mulheres."
"É tudo paleio. Ele adora as suas mulheres. Corre-lhe no sangue. Não pode viver sem elas. Mas se colocares álcool e mulheres numa balança, ele provavelmente escolheria álcool depois de uma longa deliberação e um monte de reclamações."
"Tu certamente não escolhes palavras agradáveis, pois não?"
"Eu apenas não consigo oferecer a minha gentileza como tu fazes."
Nezumi ficou de pé. Uma pequena criatura castanha pulou para o seu ombro como se estivesse estado à espera. Era Cravat, um rato que Shion nomeara pela cor da sua pelagem.
"É de alguma forma um defeito ser simpático com toda a gente?" As palavras de Shion tornaram-se afiadas. Ele sentia uma ondulação sem descanso no fundo do seu coração. A ondulação tornava difícil respirar. Este sentimento é algo que ele nunca teria conhecido se tivesse permanecido em No.6. Várias emoções contorciam-se dentro dele. Lançavam um padrão após o outro como um caleidoscópio.
Desde o começo da sua vida no Bloco Oeste, Shion tem ficado assustado com a turbulência e enriquecimento das suas emoções. O seu coração derramava a sua camada externa. A sua alma começava a reviver enquanto ele rasgada essa camada externa, tensa e rígida.
Nezumi colocou o livro na prateleira, e pegou na sua capa.
"Palavras simpáticas que não magoam ninguém―que significado têm?" Nezumi envolveu a roupa de superfibra envolta dos ombros e colocou as luvas. "Tudo o que vem da tua boca é gentil e morno. Como o chilrear dos pássaros ou o coro de insetos. É lindo, mas não leva a lado nenhum. Nem sequer a ti mesmo."
"Nezumi―"
"Shion, tu não és gentil. Apenas não queres acabar magoado por ti próprio. É por isso que tiras todos os espinhos das tuas palavras. Sem sentido de responsabilidade, vomitas palavras que nem fazem mal nem bem. Admite―Estou certo."
Shion não o podia negar completamente. Não podia nem mostrar a sua raiva nem protestar por Nezumi estar a insultá-lo. As palavras de Nezumi estavam repletas de espinhos. Se Shion as tocasse descuidadamente, iriam perfurar os seus dedos e desenhar sangue. Comparadas com isso, talvez as suas palavras fossem realmente mornas. 
Shion não achava que fosse uma coisa negativa evitar magoar as pessoas. Nem considerava a gentileza inútil. Também sabia que Nezumi não estava a criticar a sua simpatia.
Palavras gentis que não magoavam ninguém, e palavras que não carregavam o peso das suas consequências eram frequentes em No. 6.
Meu deus, coitado. Alguém devia fazer algo quanto a isso.
Foi um infortúnio. Lamento por eles.
Vamos esforçar-nos ao máximo com os nossos corações e almas.
Pessoal, devemos todos ser amigos do próximo.
Num ambiente assim, ele tinha inconscientemente crescido em separado do significado e peso das próprias palavras. Mas não havia absolutamente valor nenhum na simpatia e preocupação, promessas e amor, superficiais. Eram simplesmente repulsivas. Shion já se tinha apercebido disso sem Nezumi o apontar. Ele sabia, mas desejara poder fingir que não.
Nezumi tinha claramente visto os pensamentos que borbulhavam nas profundezas do coração de Shion. Tinha ficado irritado com a humildade e simpatia artifical de Shion, resultando nas suas palavras espinhosas. Shion sabia que merecia ser picado com elas. Mas―
"Estou sempre a falar a sério quando falo contigo."
Nezumi voltou-se.
"Hum? O quê que disseste?"
"Não..." Se ele se atrapalhasse com a sua resposta agora, talvez isso agitasse ainda mais a irritação de Nezumi. Mas Shion deu com a língua pesado e relutante a mover-se.
Estou aqui e estou a encarar-te com toda a seriedade. Essas palavras eram pesadas―tão pesadas que Shion as achou difíceis de verbalizar.
Cravat chiou do seu poleiro no ombro de Nezumi.
Chit-chit! Cheep-cheep-cheep!
"Oh, porra. Estou atrasado de novo." O tom de Nezumi era calmo. Não havia sinal da irritação de instantes atrás.
"Até já, Shion. Como eu disse, tem cuidado quando estiveres a trabalhar no lugar do velho." Com isso, Nezumi saiu. Shion foi deixado sozinho―bem, talvez não tão sozinho assim. Hamlet e Tsukiyo, os dois ratos, estavam a dormir no seu colo. 
Shion acariciou a cabeça deles com o dedo, e tomou mais um golo demorado da água doce. Era deliciosa. Reparou que a expressão "néctar doce" provavelmente se referia a um sabor assim.
Os dias que Shion gastara no Distrito Oeste apuraram os seus sentidos rapidamente, e sem o seu conhecimento: visão, audição, olfato, tacto e paladar. Quando ele vivia em No. 6, habituara-se a comer tanta comida "deliciosa" quanto quisesse, até ficar satisfeito. Tinha a possibilidade de o fazer. Desde que o desejasse, era capaz de colocar as mãos em qualquer carne, vegetais, peixe, doces, ou frutas sem limitações. Após se mudar para Lost Town, as suas opções de comida eram consideravelmente limitadas em comparação com o seu tempo em Chronos, mas raramente sentiu alguma falta.
Os bolos e pão acabado de fazer da sua mãe Karan eram simples mas deleitáveis, e nunca se fartou de os comer. Mas Shion sentia que nem esse sabor penetrara tão fundo no seu coração como o sabor desta água quente.
Drenou toda a chávena. O calor percorreu todo o caminho até à ponta dos dedos, e força preencheu o seu corpo. 
"Certo, agora está na hora de eu ir, também."
Shion cuidadosamente transferiu Hamlet e Tsukiyo para a cama e ergueu-se.
"Mas sabem, não acham que aprendi imenso à minha maneira desde que aqui cheguei? Eu até consigo classificar recibos escritos à mão. E ele diz que limpo o chão e lavo os pratos como um homem de pleno direito. De pleno direito. Posso permitir-me sentir algum orgulho de mim mesmo, certo?"
Estou a usar o meu próprio corpo e cérebro para trabalhar e obter as suas recompensas. Posso sentir-me orgulhoso, não obstante qual o tipo de trabalho, independentemente de quão pequenas sejam as recopensas. Certo? 
Tsukiyo levantou a cabeça e balançou as orelhas como se concordasse.

Caramba. Nezumi comprimiu os molares. É um caso sem esperança, reprimiu mentalmente. Não se estava a referir a Shion. Estava a falar de si mesmo. Cravatr choramingou suavemente de dentro da capa.
Skreet-skreet! Cheep-cheep-cheep!
"Calado. Não tens de me dizer; Eu já sei. Descontei a minha frustração em Shion há pouco. Eu sei."
Às vezes―embora fosse muito raro―as emoções de Nezumi tornavam-se instáveis quanto se encontrava perto de Shion. A sua auto-restrição perdia-se, e dúvidas pouco refinadas escapavam dos seus lábios. Colidiam, enviando faíscas e espalhando-se a voar. Nezumi nunca pretendera condenar Shion. Sabia que ele mesmo não era justo ou forte suficiente para ter o direito de o fazer. Mas vacilava quando estava quando estava com Shion.
O seu coração, que queria odiar e rejeitar tudo o que se relacionava com No. 6, vacilava.
No. 6. A mais detestável cidade-estado do mundo inteiro. Não era nenhuma utopia nem cidade sagrada. Esses nomes eram só uma fachada. Assim que lhe tirasse o seu couro fino, o monstro exibiria a sua verdadeira forma. 
Um monstro devorador de homens.
Nunca hesitara em destruir os estados à sua volta ou em massacrar tribos inteiras se isso significasse prosperidade  para si mesma. Saqueava, tragava e dominava.
Um dia, vou derrubá-la. Para Nezumi, No. 6 era um oponente que tinha de derrubar com as próprias mãos, uma existência a ser erradicada deste mundo.
Mas dentro deste monstro gigantesco vivera um rapaz como Shion. Shion tinha deixado um intruso, um VC―termos de No. 6 para prisioneiros violentos―entrar em sua casa, tratado as suas feridas, providenciado comida e um lugar onde dormir, e como resultado, tinha perdido a sua segura vida como elite. Shion tinha perdido tudo, e ainda assim confessara-se a Nezumi
Não importa quantas vezes eu voltasse àquela noite, eu faria a mesma coisa de novo. Iria abrir a janela, e esperar por ti. 
Eram palavras a nu e honestas. Tinham-no perfurado até ao coração.Por um instante, Nezumi não fora capaz de fazer nada além de fitar Shion sem pestanejar. Shion definitivamente não usava palavras gentis superficialmente, e Nezumi tinha a certeza de que as pessoas à sua volta eram iguais.
A mãe de Shion abrigava a inabalável crença de que o seu filho iria voltar, e pensava nele constantemente enquanto esperava. De acordo com os ratos que Nezumi enviava como mensageiros, os muffins e pão que ela fazia eram tão deliciosos, que eram suficientes para fazer as bochechas de um inchar em antecipação. E também havia aquela rapariga e o seu amor resoluto.
Era esse o tipo de pessoas que se envolvia com Shion―esse que exercia todo o esforço em viver o dia a dia. Eram honestas com as suas palavras, não condescendiam dos outros, e viviam sem perder a sua dignidade. Essas pessoas viviam dentro daquele monstro.
Se ele nunca tivesse conhecido Shion, nunca teria sequer imaginado isso. Teria continuado a repugnar cada cidadão de No. 6 e desejado pela ruína da cidade.
Mas conhecera-o.
Tinha acabado por saber.
Poderei continuar a odiar, mesmo com esse conhecimento?
Ele vacilara. Perdera compostura. Tornara-se indeciso.
Nezumi parou e voltou-se. A muralha externa de No. 6 refletia a luz desvanecida do crepúsculo. O seu brilho avermelhado fazia pensar em fogo. Há muito, muito tempo, tinha visto essa cor, que tinha queimado uma marca nas suas memórias. Não era nem carmesim, nem cor de vinho, nem vermelho. Era uma mistura de todas elas―uma cor que não podia ser descrita melhor que como um caos. 
A cor persistia na visão de Nezumi mesmo depois de saído da floresta e atravessado o mercado. Provavelmente nunca a esqueceria pelo resto da sua vida.
Estava tudo a arder. Casas, árvores, a sua irmã recém-nascida, a sua mão que a segurava. Tudo ardia. 
"Corre!" tinha gritado a sua mãe enquanto queimava. O seu belíssimo cabelo, a sua pele, o seu corpo, era uma massa de chamas. O seu pai cobrira o corpo da sua mãe com o seu próprio, agitando as mãos freneticamente enquanto tentava afastar as chamas. Um soldado de No. 6 apontara o lança-chamas na direção deles.
Mais fogo irrompeu.
O seu pai, a sua mãe e a sua irmã mais nova foram devorados pelas chamas, que ardiam altas e ferozes. Mesmo Nezumi foi sobrecarregado com um choque de calor e dor e foi derrubado no chão.
Dói. É quente. Estou assustado.
Quente, quente, quente, quente, quente, quente, quente.
"Corre!" O berro do seu pai trespassara as chamas. "Corre! Mesmo que nenhum de nós consiga, pelo menos tu―"
Então, tudo desmoronou. Nezumi tinha visto tudo. Supunha que tinha visto tudo. Mas não tinha recordações. As únicas coisas de que ele se lembrava eram a cor das chamas furiosas e o rugido―o som das chamas rodopiantes era apenas isso, um rugido de besta―e as costas de uma mulher idosa.
Ele tinha sido carregado às costas da mulher idosa enquanto ela corria. As suas costas eram esqueléticas, e mesmo com a sua idade, Nezumi achara-as muito pequenas. Mas era resistente. As suas costas e pernas eram robustas.
A mulher correra, fendendo o caminho através das chamas que voavam, arrastadas pelo vento, e com soldados de No. 6 atrás. Ela correu através um emaranhado de arbustos ao longo de um percurso selvagem e atravessou a corrente. 
Nezumi testava vivo devido a essa mulher idosa. Tinha sobrevivido.
Assim que Nezumi recuperara das queimaduras ao ponto de se mover, a idosa começara imediatamente a fazer preparativos para uma jornada. 
"Agora temos de nos distanciar do distanciar do diabo," murmurava como se falasse para si mesma. "Mas vamos voltar. Vamos voltar para exercer a nossa vingança."
Enquanto eles se perdiam desde as barreiras rochosas até às terras mais baixas que mais tarde seriam conhecidas como Distrito Oeste, a mulher idosa falava dia e noite.
Ela falava, de novo e de novo, dos últimos momento do Povo da Floresta, dos atos inumanos que mais tarde seriam gravados para sempre na memória de uns poucos escolhidos como um incidente chamado O Massacre de Mao. As suas histórias continuaram até mesmo depois de se fixarem numa base abobadada no Distrito Oeste. Nezumi tinha crescido enterrado em livros, ouvindo as histórias da mulher idosa. Nunca sentira que lhe faltara nada. Mas a cicatriz nas suas costas pulsava como se em resposta aos contos da mulher. A voz da sua mãe e os gritos do seu pai ecoavam-lhe na mente. Era-lhe doloroso. 
Corre!
Mesmo que nenhum de nós consiga, pelo menos tu―
De cada vez que o recordava, a ferida latejava imenso. Era como se a cicatriz estivesse a escrever sobre isso. A mulher idosa olhava para baixo para Nezumi silenciosamente enquanto ele rangia os dentes e suportava a dor. O seu olhar fixo era distante e despido de emoção.
A mulher idosa também tinha atingido o seu limite mental. O seu próprio ódio, desespero e angústia ameaçava esmagá-la. Ela lutava perigosamente próxima da borda de cair na tentação da morte. Nezumi pressentia com o seu instinto, não lógica, a tempestade de emoções a tomar forma dentro dela.
Naquela noite, eles estavam a dormir ao relento numa faixa deserta nos arredores do Bloco Oeste. Isso foi alguns dias antes de acabarem por se fixa lá permanentemente. Como de costume, acenderam uma fogueira e dormiram perto dela. Durante algum tempo após ter escapado, todo o corpo de Nezumi se encolhia em apreensão quando ele via fogo. Aquela cor, aquele rugido, aqueles gritos que trespassavam o seu corpo, e a sua ferida que o queimava.
Mas dentro de um ano, o seu medo dissipou-se.
Fogo era essencial para aquecer e para assar a carne. Se ele continuasse a temê-lo, congelaria até à morte. Nezumi também tinha chegado a uma conclusão.
É dos Humanos que devo ter medo, não do fogo.
Era parte da sua rotina tomar turnos a vigiar o fogo após algumas horas de sono.
"Tu deves dormir até amanhecer, quando o céu a este começa a ficar iluminado. Não te deves sentir culpado. Nós os velhos não precisamos de dormir muito."
Isso foi precisamente antes de Nezumi ter ido dormir. A velha havia mostrado um dos seus raros sorrisos enquanto acrescentava um ramo seco à fogueira. As chamas murmuraram gentilmente. Parecia-se mais com o chiar de um rato que com um rugido. 
O céu a este continuava cor de tinta preta quando Nezumi despertou. Levantou-se abruptamente, e olhou em volta. Ouviu um soluçar baixo. A voz havia-o acordado.
A fogueira ainda ardia. As labaredas ondulavam.
"Gran... o quê que se passa?"
A mulher idosa tinha-se encaracolado numa bola com o rosto nas mãos, a soluçar. Nezumi nunca a tinha visto derramar lágrimas antes. Ele deslocou-se lentamente até ao seu lado e colocou uma mão no seu joelho. 
"O que foi? Está com fome? Está magoada em algum lado?"
A mulher não lhe respondeu. Os seus soluços silenciosos não pararam.
"Vá lá, diga-me o quê que se passa? Está a doer? Está zangada?" Nezumi abanou o joelho da mulher. Ela era a única pessoa neste vasto mundo em que ele podia confiar e depender.
Eu não quero que chores.
Não sofras. Não fiques triste. Por favor, Gran.
"Desculpa..." O soluçar parou. "É uma vergonha... mas eu não podia suportar isto..."
"Mas o quê que se passa? Está bem?"
A mão da mulher esticou-se para afagar a cabeça de Nezumi.
"A minha amada terra natal está tão perto. Mas―agora, a maioria da floresta Mao está perdida. Aquela cidade demoníaca está a erguer-se no seu lugar. Pequenas lembranças da floresta onde eu cresci, onde a tua mãe e o teu pau cresceram, onde tu cresceste. Nós agora nem podemos sequer colocar um pé nesse pequeno resquício de floresta. Ainda assim, está próxima... tão próxima..."
"Gran..." Nezumi tocou a bochecha da mulher com a ponta dos dedos, e enxugou as suas lágrimas. Elas eram surpreendentemente quentes. "Não chore. Não pode chorar. Vai enfraquecer o seu coração."
A mulher idosa assentiu e encarou os olhos de Nezumi.
"Deixa-me ensinar-te uma música."
"Uma música?"
"Sim. A tua mãe era a maior cantora Cantora de Mao. Eu fui, também―há muitos, muitos anos atrás. Eu ensinei a tua mãe a Cantar."
"Vai ensinar-me?"
A mulher velha fitou Nezumi diretamente nos olhos, e assentiu com a cabeça profundamente uma vez mais. Já não estava a chorar. Os seus olhos secos eram mais escuros que o céu acima deles. Os seus olhos escuros refletiam as chamas da fogueira. 
"Adequas-te a ser um Cantor. De vez em quando saías à floresta e cantavas com a tua mãe. Lembras-te?"
Nezumi abanou a cabeça.
Todas as suas memórias eram vagas dirigindo-se até ao dia em que tudo se desintegrou em chamas. Tinha dificuldade em recordar algo claramente. 
"Apenas... uma voz."
"Voz, disseste?"
"Lembro-me de uma voz. Uma voz que disse―Vou ensinar-te uma música que terás de manter viva."
Vem cá.
Deixa-me ensinar-te uma música. Vou ensinar-te uma música que terás de manter viva.
Não tinha ouvido uma voz dizer isso?
A mulher velha deu-lhe um olhar perplexo, e a sua boca contorceu-se.
"Era... a voz da tua mãe?"
Nezumi permaneceu em silêncio por um momento à questão. Não conseguia lembrar-se da voz da mãe. Corre―apenas esse breve choro se agarrava teimosamente às orelhas, apagando a sua voz melodiosa e o seu riso. Mas mesmo que não se lembrasse, tinha a certeza de uma coisa―não era a voz da sua mãe.
"Não. Não era... humana."
"...Estou a ver." Um suspiro escalou dos seus lados retorcidos. "Estou a ver―tu já sabes."
"Huh? Eu não sei de nada. Parece que ouvi essa voz num sonho." Talvez não fosse nada além de um sonho sonolento, uma ilusão do sono. Mas a mulher velha negou com a cabeça lentamente.
"Não era um sonho. Tu és um Cantor. A deusa da floresta escolheu-te."
"Deusa da floresta..."
"Sim. Ela é a própria floresta. Ela abençoa o Povo de Floresta e também os instiga com temor. Está sempre ao nosso lado, vigiando-nos, abençoando-nos. Às vezes vai magoar, destruir e obliterar-nos."
Destruir e obliterar. Quer dizer o fogo? Chamuscava, roubava, e bania tudo para a não-existência.
"Não." A mulher idosa tinha pressentido os seus pensamentos não proferidos subtilmente. Abanou veementemente a cabeça como se para interromper as suas palavras. "O fogo é diferente. É feito por humanos. Resulta da malícia e ganância humana. Não é o mesmo que a destruição trazida pela Deusa da Floresta."
A velha atirou alguns galhos secos ao fogo. As chamas ondularam ligeiramente. O fogo diante dele era simpático. Providenciava aquecimento e calor para cozinhar. 
"As pessoas dessa cidade demoníaca queimaram a floresta até ao chão. Transformaram o altar sagrado da Deusa da Floresta em cinzas."
"A Deusa da Floresta morrer naquele dia, também?"
"A deusa da floresta não morre. Ela nunca será morta por mãos humanas. As pessoas da cidade demoníaca não conhecem nenhuma Deusa. Não conhecem o seu terror. Não tentam conhecer."
"É chamada No. 6."
"O quê?"
"A cidade chama-se No. 6. Ouvi de alguém."
"De quem?"
"Um viajante. Ele disse que era um bardo." Nezumi tiha conhecido um grupo vestido de branco enquanto recolhia galhos na planície. Todos eles tinham sacolas brancas atadas às costas.
Tinham-lhe contado que havia seis cidades-estado no mundo, e que pessoas se reuniam à sua volta para viver. Entre elas, No. 6 era a mais bela e abundante, assim como a mais isolada. 
"Tens uma bela voz, " dissera-lhe um homem montado num cavalo. O homem tinha olhos castanho claros, a mesma cor da terra na planície. "Uma voz muito boa. Se a treinares, poderás tornar-te um cantor de primeira classe. O que dizes, miúdo? Não te queres juntar a nós?"
Nezumi estaria a mentir se dissesse que não se sentia de todo atraído pela oferta.
Viajaria pelo mundo, com instrumentos e música como companheiros. Livre do ódio, livre do fardo das suas memórias, iria cantar, atuar e dançar tanto quando o seu coração desejasse.
Nezumi sentia-se profundamente fascinado com essa ideia.
Sentiu sentiu uma espécie de prazer como se tivesse imergido o corpo numa corrente gelada e límpida. Ainda assim, recuou um passo, e negou com a cabeça. 
Ele não podia partir e deixar a mulher velha. E mais que isso―não podia viver e deixar  a cidade sem punição. Não ia abrir mão do seu ódio.
"Estou a ver. É uma pena," o bardo viajante exalou, e fez o seu cavalo voltar-se. "Estou certo de que voltaremos a cruzar-nos um dia. És como nós. Não és sedentário―és do tipo que anda à deriva. Só para que saibas, eu tenho um olho misterioso que me permite ver as pessoas como realmente são," riu entredentes.
Os seus dedos alongados, adequados para tocar instrumentos, tocaram no pescoço do cavalo. O cavalo do deserto relichou. Iniciou um trote nas suas pernas robustas e espessas.
"No. 6," murmurou a vela enquanto fitava o fogo. "O nome não importa. Essa cidade, e quem vive nela, cairá um dia. A Deusa da Floresta não irá perdoá-los."
Os galhos arderam. O perfil da mulher velha era iluminado pelas chamas na escuridão.
"A Deusa da Floresta não vai perdoar. Irá trazer julgamento sobre eles."
"Quer dizer que não temos de obter a nossa própria vingança?" Podemos renunciar a esse ódio, à memória daquele grito? 
"Não, eu não vou esquecer," disse a mulher idosa. "Eu não vou atirar o meu ódio para longe. Provavelmente não viverei para ver o julgamento da Deusa com os meus próprios olhos. É por isso que me vingarei por mim mesma. Se pudesse ao menos dar uma facada―"
E a mulher velha cumpriu a sua palavra. De faca na mão, tinha acometido contra o major, que tinha vindo ao Edifício Correlacional fazer uma inspeção. A mulher nem sequer fora capaz de cortar através das roupas, muito menos esfaqueá-lo. Foi baleada através do peito, a faca ainda permanecendo na mão, e morreu nos braços de Nezumi que tinha corrido para o seu lado. Foi quase um milagre Nezumi não ter sido morto juntamente com ela. 
Foi capturado e atirado aos subterrâneos, onde conheceu um homem que se auto-denominava Rou. Talvez Rou tenha estado de algum modo em contacto com a velha, pois sabia tudo sobre Nezumi e aceitava cada parte dele.
"Vou transmitir-te todo o meu conhecimento," disse Rou. Soa semelhante ao que a Deusa disse, pensou Nezumi ironicamente.
Isso fora dois antes antes de conhecer Shion.
Nezumi parou para olhar para o céu. Os raios de sol estavam a perder força rapidamente e a ponto de murchar. Os dias eram curtos no Bloco Oeste, e a noite vinha cedo. Desde que o céu tinha sido bloqueado pela resplandecente figura de No. 6, o sol só incidia nesta terra por um breve espaço de tempo.
No. 6 dominava até mesmo os céus. Rasgava e devorada um mundo que não era suposto pertencer a ninguém.
Nezumi gentilmente sentiu as suas costas. Mesmo agora, continuava a pulsar de vez em quando. A queimadura pulsava como se a ordená-lo a nunca esquecer.
Nunca te esqueças. Nunca te esqueças. Nunca te esqueças. Nunca te esqueças. Nunca te esqueças.
Não vou esquecer. Não poderia esquecer, mesmo que quisesse.
Ele desprezava No. 6. Tinha matado o seu pai, a sua mãe, e a mulher velha. Tinha queimado a floresta, e massacrado o Povo da Floresta. Nunca hesitara em em esmagar vidas humanas sob os calcanhares se isso trouxesse prosperidade para si mesma. Não desejava a coexistência, mas o seu único reinado sob uma pilha de incontáveis corpos mortos.
Somente a sua própria prosperidade, a sua própria felicidade, o seu próprio prazer. Que existência terrível era.
Ele desprezava-a.
O redemoinho de vento do seu ódio quase o sufocava. Mas, contudo―
Shion vivera nessa cidade, também. Para Nezumi, cada e qualquer coisa em No.6 devia ser alvo do seu ódio. Não odiava apenas os comandantes, odiava também os cidadões daquela cidade por viverem vidas que não mereciam, ignorantes e até sem vontade de se esclarecerem a si mesmos.
Odeias? Realmente? Então podes obrigar-te a ti mesmo a odiar Shion também?
A própria consciência de Nezumi questionava-o.
Poderei obrigar-me a mim mesmo a odiar Shion completamente?
Era sempre uma questão amarga. O sabor amargo que se espalhava pela boca bastava para entorpecer a sua língua.
O meu ódio é tão forte, e a minha cicatriz lateja tão dolorosamente, e ainda assim...
Começou a andar, e travou de novo. Podia escutar uma melodia. Apurou os ouvidos. Podia ouvi-la.
Nezumi acelerou o passo. Contornou uma curva e foi cumprimentado com uma planície salpicada de pedras. Na borda da planície encontrava-se um pequeno teatro―o seu local de trabalho.
Um homem inclinava-se sobre uma rocha branca, tocando um instrumento de cordas. Tanto a comprida metade superior do vestuário como as calças, cujas bainhas se reuniam à volta dos tornozelos, estavam gastas e sujas. Era impossível dizer de que cor haviam sido antes. Mas o instrumento nas suas mãos era magnificente que bastasse para chamar a atenção. 
Quatro cordas estavam desenhadas através de um corpo ovalado, e o corpo captava os raios fracos do entardecer e brilhava. Estreitando os olhos, Nezumi podia ver que o corpo tinha incrustado com símbolos intrincados e decorado com minúsculos pedaços de ouro, prata, e prata baça.
Emitia uma música estranha. Era suave mas clara, aprofundando o seu tom triste. Acariciava gentilmente a tristeza enterrada no fundo dos corações. Não agitava a tristeza―apenas a alisava com suavidade.
O homem olhou para cima. Os seus olhares encontraram-se. Seria um bardo? O homem que o convidara a juntar-se às suas viagens há tempos atrás? Parecia poder ser, embora também parecesse um estranho por completo.
O homem dedilhou vigorosamente. Uma melodia tinha nascido.
Nezumi cantou *com poucas palavras* a par com a melodia. Não podia evitá-lo. A música do homem e a voz de Nezumi entrelaçaram-se juntas e flutuaram gentilmente lado a lado. Como o céu que começara agora a ficar iluminado, a música, remanescendo ao desabrochar de uma flor, fluiu como um rio sob o céu azul.
Era uma sensação reconfortante.
O corpo de Nezumi sentia-se leve como a brisa que o varria. Flutuando no vento, desabrochou no céu.
No ar, dançava alto e baixo, voltava, deslizava num grande círculo, e erguia-se. 
Os dedos do homem pararam. Nezumi também cerrou a boca.
"Não parem," disse a voz de uma mulher.
"Continua a cantar," acrescentou uma voz de homem.
Uma multidão de pessoas aglomerara-se à volta de ambos.
Nem sequer reparei num número tão grande de pessoas. Por um instante, Nezumi sentiu um calafrio através da espinha. Ele costumava ser especialmente sensível a qualquer presença atrás dele. Mesmo os passos de uma única criança bastavam para o fazer reagir. Armava-se ao som de uma pedra a tombar. De outro modo, não poderia sobreviver.
Se havia alguma exceção, era Shion. A presença de Shion era a única de que ele perdia o rasto às vezes. Por algum motivo que não conseguia compreender, não era capaz de ter percepção dele.
"Deixem-nos ouvir mais."
"Canta, canta!"
"Deixem-nos ouvir a canção de novo!"
O homem olhou para Nezumi e sorriu de viés. "Que dizes, jovem? Apetece-te cantar mais uma?"
"Nã, acho que o meu tempo acabou. O meu chefe incómodo está aqui."
"Ei, Eve!" Foi agarrado pelo braço. Nezumi voltou-se e retirou habilmente a mão.
"Olá, chefe. Parecendo arrojado como sempre."
O gerente do palco, vestido com um casaco vermelho e uma gravata borboleta, colocou as mãos nas ancas e afastou os pés. Parecia estar no auge do desagrado.
"O quê que te passou pela cabeça, para cantar num lugar assim? Estas pessoas não nos pagaram nem um cêntimo! Não sei o quê que estás a fazer, a cantar para pessoas que nem nossos clientes são. Ridículo... O quê? Onde está a piada?"
"Nada. Estava só a perguntar-me se também ficou encantado com isso, chefe."
"Por―não sejas idiota!" balbuciou o gerente. "Só vim dar uma olhada, já que te estavas a demorar tanto. E encontrei-te aqui, a dar o teu ótimo pequeno concerto ao relento. Trabalha em que nos traga dinheiro, já te disse."
O chefe puxou as pontas do seu bigode, dirigiu-se ao homem e amenizou a expressão com um sorriso suave.
"Diga, senhor, tem um talento impressionante nas mãos para tocar. Por quanto gostaria de trabalhar comigo? Com a sua música e Eve a cantar, certamente seriamos falados pela cidade. Iríamos atrair uma grande multidão."
O homem abanou a cabeça silenciosamente em sinal de negação.
"Quem me dera que me dissesse isso a mim."
"Eve, não me digas essa porcaria," retorquiu o gerente. "Pago-te sempre uma grande quantia"
"Oh, a sério? Deve haver algum tipo de abismo entre a sua definição de 'grande quantia' e a minha."
O homem ergueu-se silenciosamente. Aproximou-se de Nezumi e sussurrou ao seu ouvido.
"Também és o vento?"
Vento?
"Um vento que sopra sobre a terra conforme a sua vontade. Não habita nem fixa as suas raízes num ponto. Como nós."
Nezumi encarou os olhos do homem. Eram azuis claros. Poderia possivelmente ser aquele bardo.
"Tu cantas, eu toco," continuou ele. "É quem nós somos. Mas porquê que permaneces aqui? Porquê que não te tornas livre, como o vento? O quê que te capturou e mantém aqui?
O homem recuou. Ele dedilhou apenas um acorde. Então arrumou o seu instrumento na bolsa e lançou-a por cima do ombro.
"É melhor que te libertes em breve, jovem."
Nezumi não tinha como lhe responder. Apenas assistiu o homem a partir.
O quê que te capturou e mantém aqui?
Serei capaz de me libertar destas correntes? Poderei cortar estas correntes de ódio? E Shion, que me prende? Serei libertado? 
Um dia, escolherei viver assim.
Esse dia chegará.
Então será um adeus, Shion. E adeus, No. 6.
"Vão para casa, vão para casa! Se querem ouvir Eve a cantar, voltem ao teatro com algum dinheiro. Grande concerto este noite!" A voz grave do chefe soava entre a multidão.
Nezumi manteve-se enraizado no mesmo ponto enquanto o vento passava por ele, acariciando o seu cabelo.


Admito que aqui fiquei muito contente por descobrir algumas das coisas de Nezumi. Julguei que ele sempre tinha estado bem amarrado ao seu ódio, mas pelos vistos no começo ele teria de gostado de poder renunciar a isso. Parte da sua personalidade foi, afinal, não só moldada pelo que ele passou, mas pelos ensinamentos da Gran. Além disso, identifiquei-me bastante com a atitude que ele tomou ainda em pequeno, de não ir com os bardos e seguir a vida que queria porque tem um propósito no seu modo de vida atual, e também para não abandonar as pessoas em que confia.

A parte final deste capítulo foi ilustrada pela própria Hinoki Kino, e inserido no penúltimo volume de No.6. Irei tirar foto e fazer um post com isso mais tarde, colocando aqui o link :)

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