15.9.15

Tradução da novel Beyond - cap 4


Então...

É com muito orgulho que anúncio que finalmente acabei de traduzir Beyond - e para quem não sabe do que falo, aqui está a introdução e a listagem de capítulos traduzidos: www ^^ Este capítulo é contado da perspectiva de Nezumi. Quando mais tarde fizer um post onde reunirei ilustrações oficiais ou não feitas de Beyond, encontrarão uma cena deste capítulo ilustrada por uma fã em formato mangá, a cena de Shion bêbado, que teve até mesmo direito a um CD Drama (aqui). Aqui poderão ver por inteiro a aparição do pai de Shion e ainda como Nezumi acredita firmemente em Shion, um tanto quanto irónico considerando o capítulo anterior. Aproveitem!

NO. 6 ALÉM

Dias de Nezumi

As nuvens encobriam o sol, e a terra arrefeceu rapidamente na penumbra. A atmosfera perdeu depressa o calor, e o clima habitual agora parecia uma ilusão. A savana encontrava-se pontilhada com arbustos baixos e árvores não muito crescidas; se alguém se erguesse num lugar alto, poderia provavelmente ver através do horizonte.
O solo avermelhado estendia-se exposto, e pedregulhos angulares situavam-se aqui e ali ao longo da terra. Era a pintura da ruína e da infertilidade em si. Mas uma série de arbustos abrigava fontes naturais de água límpida nas suas profundezas. O arvoredo destacava-se pela sua tonalidade de verde, uma sombra mais exuberante que as restantes, e os seus arbustos que rendiam frutos vermelhos. Os frutos eram do tamanho do punho de uma criança e demasiado duros para comer, mas a sua cor vívida era bela, e combinava com o castanho-avermelhado da terra e com o verde do arvoredo.
 Nezumi agachou-se junto à fonte e fez uma concha de água com as mãos.
Era deliciosa. Para alguém que tinha viajado através de terras secas, esta água era como um néctar rejuvenescedor que lhe dava força e acelerava a sua recuperação.
"Ei, vocês também querem fazer uma pausa?" Dois pequenos ratos espreitaram com a cabeça para fora do bolso do seu casaco. Treparam para a perna de Nezumi, e assim que alcançaram o chão não se detiveram tanto a olhar para a fonte como a atacar diretamente o fruto vermelho.
A pele do fruto era demasiado rija para humanos trincarem, mas não parecia oferecer dificuldade aos incisivos dos roedores. Os ratos devoraram um fruto inteiro em minutos, fazendo agradados sons de triturar durante todo esse tempo.
Um rato com pelagem castanho-clara―Shion nomeara-o Hamlet―olhou para cima e inclinou a cabeça em questionamento.
"Não, tudo bem," disse-lhe Nezumi. "Não me parece que possa lidar com esse fruto. Vocês não têm de se preocupar comigo; tenho muito para comer."
Aparentemente satisfeito com a resposta do seu mestre, Hamlet começou a mordiscar de novo. Nezumi sorveu outra mão-cheia de água, depois lavou a cara. Livrou-se das suas roupas e imergiu o corpo na fonte.
Estava longe de um banho quente, mas a água fresca era revigorante. A fonte era mais profunda do que ele pensava: se mergulhasse, podeia ver de onde a água brotava do fundo arenoso.
Diversos peixes pequenos nadavam em volta das sombras das algas, que balançavam preguiçosamente com a corrente e o remetiam a uma dança elegante.
Ali estava um mundo inteiramente diferente do mundo à superfície.
"É sempre pacífico debaixo de água?"
Há quanto tempo teria sido? Shion sussurrara essas palavras uma vez, de olhos perdidos no ar.
Foi naquele quarto no Bloco Oeste. Era de madrugada. Ele recordava-se da chuva regular que tinha finalmente cessado ao fim de três dias, e da noite que trouxe um frio cortante que cobriu o Distrito. Mas agora tinha começado a amanhecer.
Precisamente na véspera, não muito depois de o sol se pôr, Rikiga tinha feito uma das suas raras aparições na residência de Nezumi.
"Shion, eu trouxe-te isto para tu comeres." Rikiga, que tinha enfrentado o frio e o vento tumultuoso para lá chegar, tinha enfatizado a parte de "para tu comeres" enquanto entregava um saco de papel a Shion.
Shion espreitou o interior e emitiu uma exclamação de felicidade.
"Uau, é incrível! Pão branco e carne!"
"Também há vegetais frescos e vinho. Oh, e queijo. Praticamente um festim, não achas?"
"Podíamos dar um banquete com isto!" disse Shion com admiração. "Rikiga-san, estás a dar-nos isto tudo?"
Rikiga comprimiu os lábios e abanou a cabeça. "Não 'nos'. Estou a dá-lo a ti. Não confundas essa parte. Compreendido, Shion? Tu vais comer isso. Não tens absolutamente nenhuma necessidade de o dar a um ator astuto com língua de serpente."
"Vamos todos comer juntos," Shion sorriu. "Prometi uma sessão de leitura em voz alta às crianças amanhã.Vou fazer uma sopa agradável e calorosa que possamos todos comer juntos. Será um almoço esplêndido."
O rosto de Rikiga contorceu-se. A sua expressão era a de alguém que sentia uma comichão horrível nas costas, mas que não conseguia alcançar longe suficiente para coçar independentemente do quanto tentasse. Nezumi sufocou um riso atrás do seu livro.
"O quê? O quê que tem tanta piada, Eve?"
"Oh, nada. Não tencionava rir. Mas se queres mesmo ouvi-lo de mim, foi porque fizeste uma cara tão adorável, velhote, que não pude fazer nada que não sorrir."
Nezumi fechou o livro e levantou-se. Espreitou na sacola de papel que Shion lhe estendia, e assobiou alto.
"Uau, uau. Isto é muito mais que um mero presente de cortesia. Se se procurar encontra-se, hum? Só um traficante do mercado negro como tu conseguiria adquirir isto, senhor Rikiga."
"A quem estás a chamar de traficante do mercado negro? Sou um genuíno homem de negócios."
"Um homem de negócios que vende mulheres a oficiais de No. 6 e obtém quantias exorbitantes por isso? Que trabalho tão filantrópico e santo fazes. Até me sinto humilhado."
Rikiga rangeu os dentes e fez uma expressão azeda.
"Shion, olha. Estás livre para usar a carne e os vegetais para fazer sopa ou fazer deles parte da decoração interior, mas seja lá o que fizeres, não o deixes ter um bocado. Nem sequer o deixes cheirá-lo."
Shion não estava a escutar. Os seus olhos brilhavam enquanto pousava o conteúdo da sacola na mesa.
"A zona de Nezumi é ótima," disse ele.
Batatas, cebolas, alfaces, cenouras. Tudo fresco. Os ratos chiavam incessantemente do topo de uma pilha de livros.
"Ele raramente usa algum tempêro, mas continua a ser muito boa," continuou Shion. "Como todos estes ingredientes, deveremos ser capazes de fazer a melhor sopa de sempre. Toda a gente vai ficar tão feliz. Obrigado, Rikiga-san."
"Ah... mas, bem, Shion. O que eu estava a dizer é que eu desviei-me do meu caminho para―"
"Antes da nossa refeição, iremos agradecer-te, Rikiga-san. E não será um ritual frio. Tenho a certeza de que toda a gente se sentirá verdadeiramente grata enquanto o disser. Certo, Nezumi?"
"É claro. Iremos dizer, 'Estou agradecido e não desejo por nada além do melhor do fundo do meu coração para esta alma com compaixão. Oro para que a sua alma sublime esteja sempre livre de qualquer angústia ou dor,'" disse ele com a voz de uma donzela inocente. Rikiga tinha um ponto fraco por inocência, pureza, e coisas imaculadas. Talvez fosse por ter consciência da sua própria corrupção, ou talvez fosse apenas o seu desejo, mas seja qual for a razão, não podia fazer nada a não ser sentir-se atraído por elas. 
Quer fosse uma donzela inocente ou uma prostituta a um canto; uma mulher nobre ou um leal homem jovem; um mercador astuto ou um filósofo de idade avançada, Nezumi podia tornar-se em qualquer coisa que as outras pessoas desejassem. Ainda que por um curto momento, ele podia mostrar-lhes uma ilusão dos seus próprios desejos apenas com a sua voz.
Neste preciso momento, ele tinha a certeza de que Rikiga tinha visto o semblante de uma rapariga imaculada sobrepor-se ao seu rosto. O olhar estava conectado ao coração, e não havia nada a fazer que não ver aquilo que queriam em vez do que realmente se apresentava. As pessoas também se recusavam a ter noção do que não queriam ver.
"Caramba! Um ator de terceiro grau e os seus truques. Não penses que te livras depois de fazer troça de mim, Eve."
"Nunca me ocorreria fazer algo tão desgostoso como manipular-te em nenhum dos meus caprichos, velho." Nezumi encolheu os ombros
"Essa raposa traiçoeira. É tão desagradável como parece. Shion, porquê que nem vens viver comigo antes de ele começar a influenciar-te? Eve, se não mudares o teu comportamento agora, um dia pagarás por isso. Já sei, da próxima vez trarei alguma manteiga. Para ti, quero dizer, Shion. E vou emprestar algumas frutas. Certifica-te de que o bastardo não tas rouba."
Rikiga envolveu-se num longo discurso, então foi para casa.
"Ele nunca se cala," reclamou Nezumi. "A coisa certa a fazer seria entregar estes presentes e ir diretamente para casa. Ele é a encarnação da falta de tato, ultrapassando assim o que é bem vindo.
"Bem, eu acho que foi simpático da parte dele," disse Shion. "Ele veio entregar-nos todos estes itens raros. É ingrato da tua parte falares mal dele."
"Ha," Nezumi escarneceu. "Alguns dos oficiais de No.6 devem ter tomado o gosto às mulheres que o velhote lhes arranjou. O velho tem uma bela quantidade de bens como recompensa por arranjar essas mulheres, excepto material que não seja fácil de passar para cá a partir de No. 6, de qualquer modo."
"Mas ele partilhou-os connosco em vez de os guardar para si. Sem esperar nada em troca. Acho que foi bastante nobre."
"Nobre? Estás a brincar comigo?"
"Estou errado?"
Nezumi sorriu com apenas um dos lados do rosto. Ele achava a natureza confiável de Shion em simultâneo irritante e engraçada. A sua franqueza e vontade de confiar era estranha a Nezumi. Eram tão insignificantes como enfeites frívolos numa peça de roupa.
Rikiga fizera-o por culpa.
Ele tinha vergonha de ter feito negócio vendendo mulheres do Bloco Oeste a homens de No. 6, e de embolsar dinheiro com o que vinha daí. Por um lado, era um sinal de que o coração de Rikiga ainda não tinha sido corrompido até ao âmago, mas por outro lado, era também um sinal da sua fraqueza.
Rikiga quisera absolver a sua culpa, a sua própria fraqueza, dando a Shion parte do que tinha ganho. Ele quisera ver o sorriso despreocupado de Shion, sentir a sua alegria, e atrair algum alívio para si mesmo. Fora tudo para isso. Ainda assim, Shion era incapaz de ver através dessa fachada. 
Porquê que ele acredita nas pessoas tão facilmente? Como é que faz isso? Como é que continua a fazê-lo? É um completo mistério.
"Nezumi?" Shion pestanejou na sua direção apreensivo. "Em quê que estás a pensar?"
"Nada, na verdade... oh, o vinho não deve ser boa ideia para as crianças. Vamos tomá-lo nós."
"Claro. Vamos tirar um pedaço de queijo e pão para acompanhar. E se também cozinharmos algumas batatas?"
"Soa bem. Esta vai ser uma noite maravilhosa. Deixa-me retirar o que disse há pouco―Estou quase por completo sinceramente grato pela incrível generosidade de Rikiga-san."
"És bastante materialista."
"Chama-me liberal. Agora, vou tomar conta das batatas, nesse caso."
"Nezumi, nós só temos canecas para beber."
Não podia pedir por melhor."
"Vamos beber vinho em canecas?"
"Ei, não te forces. Posso bebê-lo todo se não quiseres."
"Nos teus sonhos," cortou Shion. "Vamos dividir igualmente em metades."
Derramaram vinho para ambos enquanto lanchavam pão, queixo, e batatas. O rótulo na garrafa indicava que o vinho provinha da cidade ocidental de No. 3, e que a aquisição era um quanto cara. Uma doçura gentil trepava do fundo da sua acidez. Era delicioso.
Antes de se passar muito tempo, ambos esvaziaram a garrafa inteira entre eles.
"És capaz de lidar bem com o álcool, não és?" perguntou Nezumi.
"Impressionado?" Shion sorriu presunçosamente com um rosto ruborizado.
"Não impressionado, a sério, apenas um tanto surpreendido. Não sabia que bebias."
"Esta é a primeira vez que bebo em toda a minha vida."
"...O quê?"
"É a minha primeira bebida de sempre. Não esperava que soubesse tão bem," disse Shion, pensativo.
"Hã? Espera, Shion, sentes-te bem? Acabaste de beber meia garrafa de vinho. Deves estar bastante bêbado agora."
"Mmmm, não realmente, não," disse Shion animado. "Apenas sabe bem. E agora sinto-me estúpido por me deicar ser incomodado por coisas tão pequenas."
"Que coisas pequenas te deixam incomodado?"
"Hum, deixa ver," Shion demorou, depois riu-se. "Não me consigo lembrar. Se não me consigo lembrar, em primeiro lugar não devem ser assim tão importantes. Haha, um brinde à despreocupação! Um brinde ao vinho!"
"Shion―estás relativamente bêbado."
"Eu estou bêbado. Bebi vinho, não bebi? É claro que ficaria bêbado. Ou há alguma lei a dizer que não estamos permitidos a ficar bêbados?" Shion inclinou-se tanto para a frente que os seus narizes praticamente se tocaram.
"Shion... por favor diz-me que não comprar lutas com as pessoas quando estás bêbado."
"Comprar lutas com as pessoas? Que pessoas? Tu?"
"Somos os únicos dois aqui além dos ratos."
Shion levantou-se abruptamente e pôs uma mão na anca.
"'Somos os únicos dois aqui além dos ratos.' Ha ha ha, como foi? Não foi uma imitação impressionante?"
"Imitação de quem?"
"De ti."
"Nem um bocadinho."
"Mentiroso! Soei exatamente como tu." Shion apontou com um dedo a Nezumi, e desenhou um círculo com ele . "Sabes, acho que despertei o meu talento para fazer imitações. Talvez seja um prodígio da mímica. Eu devo ser um prodígio. Os céus confiaram-me este talento incrível. 'Somos os únicos dois aqui além dos ratos.' Ha ha, vês! Eu realmente soei como tu!"
"...É divertido imitar-me?" disse Nezumi exasperado.
"É." Shion agachou-se de novo e levou o seu nariz diretamente ao de Nezumi. "É inacreditavelmente divertido. Quando estou contigo, tudo é uma grande felicidade de experimentar. Às vezes pergunto-me porque será tão divertido estar contigo."
Nezumi afastou o rosto, inclinou o queixo para trás, e tentou sorrir gentilmente como uma mãe a tolerar o seu bebé. Os músculos em torno das suas bochechas estavam tensos e recusavam-se a cooperar. 
"Estou a ver. Bem, isso é bom para ti, não é? Simplesmente ótimo. Mas acho que te te deixaste ser demasiado influenciado pelos cães da Inukashi. Somos humanos aqui. Podemos comunicar sem ter de esfregar os narizes."
"'Somos humanos aqui. Podemos comunicar sem ter de esfregar os narizes.' He he, como foi desta vez? Não soou como tu? Mas sabes, Nezumi, as pessoas não conseguem comunicar tão facilmente como fazes parecer. Comparado co' o número de coisas que não compreendemos, há de longe mais coisas que desejamos poder compreender mas não p'demos. Uma centen'―um milhar de ma's coisas. É 'sim que as coisas são."
"Shion... a tua pronúncia está a tornar-se indistinta."
"Mas é bom para os cães, né? Eles só têm desfregar os narizes juntos e pronto, sniff sniff, para se entenderem. E ta'bém se lambem unzaos outros. "
"Nem te atrevas a lamber-me a cara."
"N' vou. Devia morder-te, porém," disse Shion, arrastando a última sílaba com uma voz melodiosa.
"Corta essa, seu bêbado. Despacha-te e vai dormir. Não me culpes se amanhã de manhã acordares com uma ressaca. Além disso, já paraste para pensar em que idade tens? Tens dezasseis e não tens uma vaga ideia de como beber... Shion? Ei, Shion, o quê que se passa?" 
Shion estava recostado pesadamente contra ele. Nezumi podia ouvir o som da sua suave respiração adormecida.
"Raios, deves estar a brincar comigo," murmurou Nezumi. "Ei, não adormeças aqui! Não te vou carregar até à cama, sabes."
Nezumi deslocou o peso. Shion deslocou-se juntamente com ele, e ambos tombaram no chão. A respiração de Shion não sofreu nada além de um solavanco. Continuou, regular.
"Deuses," reclamou Nezumi. "Só ficas acordado por tempo suficiente para balbuciar o que tens no coração, depois apagas as luzes. Não sei se podias ser mais um 'bêbado típico' que isto."
Cheep cheep cheep! Cravat levantou o olhar do pedaço de queijo que estava a mordiscar e abanou os bigodes. 
Ele é um caso sem esperança, parecia dizer. Quase pareceu também deixar escapar um suspiro.
Nezumi não conseguiu segurar mais. Rebentou a rir.
Continuou a rir para si mesmo, com Shion ao seu lado.

Acordou.
Ele sabia que estava a amanhecer porque o ar da sala tinha-se tornado ainda mais enregelado. O frio tendia a piorar assim que os céus orientais começavam a adquirir luz. Esta era também a hora em que o maior número de inválidos, idosos, crianças esfomeadas, e pessoas fisicamente fracas soltavam o último suspiro.
A morte escorregava pela fenda entra a chegada da alvorada e o abandono da noite e roubava as pessoas para longe. Mas ainda assim, pensou Nezumi, o ar gelado e a fome são servos muito mais misericordiosos da Morte. Muito, muito mais misericordiosos que a violência crua.
A cicatriz nas suas costas latejou.
Crueldade―essas chamas hostis queimaram as suas costas precisamente por serem cruéis. Tinham tragado a sua família e reduzido tudo a cinzas.
Pulsa, pulsa. A dor incessante rastejava pelas suas costas. Nezumi levantou-se e regulou a respiração. Tomou uma golfada do ar gelado que convocava a morte, e expirou. O ar frio que deslizou pelas suas vias respiratórias eram sinal de que estava vivo. Estava vivo e quente, motivo pelo qual podia sentir este frio.
Pessoas vivas são quentes. Shion ensinara-lhe isso. Shion ensinara-lhe que viver era sentira o calor dos outros mesmo ao seu lado, e transmitir o seu próprio calor aos outros.
Nezumi passou uma mão pelo cabelo, depois inspirou e expirou profundamente uma vez mais. Para ele, viver tinha sempre sido acerca de vingança e nada mais. A sua própria sobrevivência, o facto de ele estar vivo era vingança sobre No. 6. Um dia, um dia não muito distante, ele viveria e sobreviveria para entregar o último sopro a No. 6―essa sempre foi a única coisa na sua mente. Não queria saber de mais nada. O seu ódio e aversão por No. 6 apenas crescia, nunca diminuía. Mas ele tinha vacilado.
A vingança não era a única coisa no seu coração. Havia também algo quase inteiramente diferente―algo que existia completamente desconectado de No. 6.
O próprio Nezumi não podia compreender o quê.
Por isso vacilei. Ele vacilava enquanto se perguntava o que aconteceria a si mesmo após completar a sua vingança―ficaria completamente vazio, ou continuaria a transbordar? Seria deixado ficar um núcleo de ódio teimoso dentro dele? Vacilou.
Se ele vacilasse, distrai-se-ia. Distrair-se criava uma abertura vulnerável.
Nezumi alcançou um ponto atrás de si e sentiu as costas. O latejar tinha diminuído consideravelmente. Em breve cessaria por completa. 
“Mm...”
Shion voltou-se. Noite passada, Nezumi tinha-o arrastado para a cama, e Shion continuou a dormir sem um som, excepto a sua sua respiração.
"Tu és tão―" sussurrou no rosto adormecido de Shion. "Tão difícil de proteger, tão complicado de tomar conta... apenas um caso sem esperança."
Shion remexeu-se de novo. As suas pestanas tremularam, e lentamente abriu os olhos. Não havia nenhuma fonte de luz excepto as chamas que morriam no fogão. Na escuridão quase cor-de-tinta, Nezumi podia ver um esbatido contorno branco do perfil e cabelo de Shion.
"Nezumi... disseste alguma coisa?"
Apesar do facto de ele ter acabado e acordar, e de eles estarem imersos na escuridão, a visão de Shion captou diretamente Nezumi e as suas orelhas pressentiram as suas palavras.
"Estava a dar-te os meus cumprimentos matinais. Bom-dia, sua Majestade. Como se sente hoje?―Algo assim."
"Eu não... me sinto assim tão mal."
"Oh. Não estás com ressaca? Parece que tu e o álcool se dão bem. Se não fores cuidadoso, vais acabar como o velho. Não digas que não te avisei."
"Não se pode ficar de ressaca a partir do vinho. É à base de fruta, então é gentil com o corpo."
"É verdade?"
"Sim. Acho que ouvi linhas parecidas com essas de... talvez seja só de mim."
"Não és de muita confiança, és?"
"Nem por isso. Sou bastante desconfiável―finalmente comecei a aperceber-me disso."
"Então descobriste-te a ti mesmo. Parabéns," Nezumi ironizou sem querer realmente dizer isso.
Shion sempre se explorava a si próprio minuciosa, diligente, e persistentemente. Sempre tentou encarar de frente o que residia dentro dele. 
E tal era merecedor de admiração e elogio, não era?
Nezumi sabia diretamente nos ossos quão difícil era não fugir de si mesmo. Ele até sentia uma espécie de medo reverente por este rapaz difícil de proteger, complicado de tomar conta, sem esperança.
Shion levantou a metade superior do corpo e os seus olhos perderam-se no ar. 
"Nezumi."
"Hum?"
"Achas que é sempre pacífico debaixo de água?"
"O quê?"
"De baixo de água. Como no mar, num rio, ou num lago... é sempre pacífico debaixo de água?"
"De que estás a falar? Tiveste um sonho ou assim?"
"Sim. Foi o sonho mais vívido que tive nos últimos tempos. Pergunto-me se é por causa do vinho?"
"Foi um sonho da cor do vinho?"
"Não... Eu estava a dormir debaixo de água, junto ao fundo. Conseguia respirar sem dificuldade. Eu apenas continuei a nadar e nadar." Shion deslocou o peso do corpo e deu um pequeno suspiro.
"E depois?"
"É tudo. Eu estava apenas a nadar. Era tudo tão calmo e belo, e eu sentia-me tão feliz. Parecia um lugar pacífico, sem luta ou invasões..."
"Impossível." Nezumi sorriu debilmente no escuro. Ingénuo, não és? "É claro que há lutas debaixo de água. É um mundo onde os maiores comem os mais pequenos como à superfície. Pensei que te tinhas especializado em ecologia."
"Era suposto eu ter-me especializado."
"De qualquer forma, isso não interessa. Julguei que ecologia era um ramo sobre a interação entre os organismos e o seu meio ambiente. Não aprendeste que também existem predadores debaixo de água?"
Shion abanou a cabeça. Eu sei isso. Não estou a dizer que seja um Paraíso subaquático. Só pensei, uma vez que não há humanos..."
"Então o quê?"
"Não haveria lutas sem sentido. Não haveria assassinato pelo bem do assassinato, ou outro tipo de mortes abomináveis."
"Era nisso que estavas a pensar enquanto nadavas?"
"Sim. Era tão... bonito. Havia areia no fundo, e estendia-se além. Havia pedras cor-de-jade aqui e ali no areal, que brilhavam de tempos a tempos, apesar de eu não saber como. Eu alcancei-as para pegar numa, mas de ideias."
"Porquê?"
"A pedra era tão bonita, que quase senti medo de lhe tocar. Senti que se lhe tocasse, o mundo se ia desintegrar.
"Não sabia que eras tão romântico," comentou Nezumi. "Soas como uma donzela corada."
Shion riu-se. "Pois, eu também me sinto um pouco embaraçado. Mas não posso fazer nada, pois não? Foi assim que me senti. Mas de certa forma arrependo-me disso agora. Se ia acordar de qualquer das maneiras, devia ter apanhado uma."
Nezumi quase explodiu a rir de novo. Perguntou-se se estaria a perder a habilidade de controlar as suas emoções."
"Devias voltar a dormir," disse ele. "Talvez sejas capaz de ter o mesmo sonho. Então, poderás apanhar tantas rochas ou moedas quanto o teu coração desejar."
"Suponho que sim. Ei, Nezumi."
"Hum?"
"Nós nadamos quando escapamos de No. 6, também, não foi? Mas nessa altura, eu estava tão concentrado em nadar que não tive tempo para parar e sentir muito."
"Nós estávamos a nadar no esgoto. É completamente diferente daquilo com que tu sonhaste."
"Mas... é verdade que eu vi... tantas coisas belas... aqui no Distrito Oeste..."
Nezumi podia ouvir o outro rapaz deslizar até uma respiração suave enquanto caía no sono. Podia sentir o calor de Shion. Sentia que o seu calor era tudo o que precisava para atravessar os frios dias de Inverno.
Em quê que eu estou a pensar? É absurdo. Aqueles que não conseguem viver por conta própria, aqueles que não conseguia encarar o destino sozinhos, simplesmente não sobreviviam. Era assim que as coisas funcionavam no Bloco Oeste.
Não preciso de calor nenhum. 
Nezumi levantou-se e encheu uma chávena com água dos seus armazéns. Bebeu-a de um trago. A água fresca escorregou através do seu corpo. Shion murmurou algo ininteligível.
"Conseguiste apanhar uma?" disse-lhe Nezumi. Não houve resposta. Apenas o pesado gemido do vento soprante ecoava no ar.
As algas ondularam de repente. Não em movimentos lânguidos como há instantes atrás; agora, curvava-se como uma árvore magra a ser amaldiçoada pelo vento.
Era um movimento inquietante.
Um peixe prateado irrompeu da selva de algas e arremeteu na linha de visão de Nezumi. Não demorou mais que um instante―mas Nezumi viu-o claramente engolir metade de um peixe menor. Predador e presa. Os que devoravam e os que eram devorados.
A perturbação foi breve, e em pouco tempo a selva de algas retomou o seu estado normal e o pequeno peixe voltou a nadar como se nada tivesse acontecido.
Nezumi achou uma pedra azul no leito de água. Pegou nela sem hesitação. A pedra não era nem brilhante nem bela. Era apenas uma rocha imperfeita, disforme.
O ar escapou dos seus lábios e formou um jato de bolhas. De repente, não podia respirar. A menos que fosse em algum tipo de sonho, ele sabia que era impossível para um humano como ele permanecer debaixo de água por muito tempo.
Nezumi esbracejou na água almejando a superfície.
O sol aparentemente regressava, pois a superfície de água agora reluzia de branco. Uma sombra negra estendia-se diagonalmente através da superfície. Era a sombra de uma árvore caída. Uma árvore que morria tinha sido derrubada pelas raízes e estava meia pendurada dentro de água. Nezumi agarrou um ramo e içou-se para cima. Escorria água dos seus ouvidos e o seu cabelo agarrava-se ao pescoço e ombros. Agora podia respirar. Encheu o peito de ar.
A árvore caída continuava parcialmente conectada com as suas raízes, e talvez devido a isso, as suas folhas eram viçosas e os ramos cresciam em todas as direções sem mostrarem sinais de estar a murchar. Nezumi balançou a sua perna para cima do tronco, e respirou mais uma vez. Não esperava que uma árvore deste tamanho crescesse aqui. Este oásis vulgar de facto escondia muitos tesouros nele.
Algo se moveu pelo canto do olho, em torno da área para onde ele tinha atirado os seus pertences. Parecia uma pessoa.
Screek, screek!
Scritch, scritch, scritch!
As vozes dos pequenos ratos tornaram-se urgentes. Rangiam os dentes em apreensão à sombra suspeita diante deles.
“Au! Parem com isso! Auch!” gritou uma voz. Pertencia a um homem. "Jesus, o que raio são estas coisas? Afastem-se! Vamos, desapareçam! Parem de me morder! Caramba, vou assar-vos e comer-vos. Ei, a minha orelha!"
Aparentemente os ratos tinham-se lançado ao ataque. Os protestos do homem ficavam cada vez mais estridentes.
"Au, au, au! Raios, seus bastardos!"
O homem tentou fugir, deixando maldições para trás. Balançou o seu braço em torno de si para enxotar  os ratos. A sua mão agarrava firmemente os pertences de Nezumi.
Nezumi levantou-se na árvore tombada e apertou a rocha que tinha na mão.
"Ei, ladrão."
O homem sobressaltou-se e girou à sua volta. Nezumi lançou-lhe a rocha diretamente ao rosto. Ao mesmo tempo, ele próprio mergulhou na água. Nadou em direção à costa.
O homem estava ajoelhado na relva, cobrindo a cara com ambas as mãos. Sangue pingava entre os seus dedos. Hamlet e Cravat treparam para o seu ombro enquanto Nezumi rapidamente se vestia.
Os pequenos ratos protestavam entre si como se a clamar fervorosamente.
"Está bem, já percebi, já percebi. Vocês dois fizeram um bom trabalho." Nezumi acariciou ambos na cabeça com o dedo. Depois, Cravat mergulhou no seu bolsou, e Hamlet nas suas madeixas de cabelo molhado.
"Ugh... isso dói. Os meus olhos... Estou cego! Ajudem-me!" O homem estendeu a mão ensanguentada no ar e debateu-se.
"Eu apontei para o meio da testa, e a minha pontaria é boa. Nunca falhei. Atrevo-me a dizer que fui gentil contigo."
O homem olhou para cima para Nezumi ainda com uma mão na testa.
"Gentil?" Disse ele incrédulo.
"Sem dúvida fui. Podia ter alojado essa rocha na tua testa. Mostrei compaixão para com um ladrão. Devias estar grato."
O homem afastou a mão. Sangue jorrava do centro da sua testa e deslizava ao longo da face.
"Chamas a isto ser gentil?"
"É claro. Nenhum dano foi infringido no teu esqueleto ou cérebro. Apenas ficaste com um pequeno rasgão na pele. É quase demasiado brando como punição para roubo."
"Porquê, obrigadinha," disse o homem sarcasticamente. "Vou certificar-me de ter as minhas ondas cerebrais analisadas num hospital. Ugh, deuses, isto dói! Está a arder!" O homem gemeu enquanto esfregava a cara. Então, tirou um conjunto de garrafas de vários tamanhos de uma mochila de pano pendurada sob o ombro. Dentro das garrafas havia líquidos de todas as cores. O homem juntou habilmente alguns líquidos para produzir um em tons lilases, uma solução ligeiramente viscosa que onde ele ensopou uma peça de roupa e aplicou na ferida.
"Hum, isto deve funcionar. A ferida deverá fechar amanhã de manhã." O homem então envolveu a roupa em torno da testa e sorriu. Ele era moreno, e tinha vincos profundos nos olhos e na boca. Detinha fios de cabelo branco proeminentes na sua cabeleira desgrenhada. Contudo, a sua voz e centelha nos olhos eram animados―joviais, até.
A sua idade era um mistério. Era difícil dizer sequer se era jovem ou velho, mas continuava um ladrão em qualquer dos casos.
"Mas deixa-me dizer, rapaz―" Assim que o homem devolveu as garrafas à sua mochila, voltou-se para Nezumi e começou a falar com ele com um sorriso. O seu tom era muito similar ao de um professor a ensinar ao seu estudante os princípios do alto conhecimento.
"Agora que posso olhar-te de perto, posso ver que és uma beldade. Uma beldade como tu não devia nadar despido num lugar destes. Este lugar é perigoso―um nicho de vagabundos e trapaceiros. Nadar num local destes sem uma única peça de roupa a cobrir o corpo―porquê, és como um doce cordeiro a vaguear entre uma alcateia. Cuidado é que é preciso, rapaz, cuidado."
"Obrigado, não esperava ser ensinado por um ladrão. Bom saber que nem sequer te sentes culpado pelo que fizeste, velhote."
"Velhote? Estás a chamar-me velho?"
"Bem, eu não sou, certo? Não sou nem velho nem um ladrão."
"O homem pestanejou. Duas. Três. Quatro vezes. Assim que parou de pestanejar, irrompeu a rir.
"Ha ha ha! Teve piada! Ha ha ha ha! Essa foi boa! Tens uma língua afiada para uma cara tão bonita. Ha ha ha! Ah, tu és interessante!" gargalhou. "Ha―"
O riso do homem cesso. Nezumi pressionara uma faca na sua garganta."
"Que voz irritante que tu tens," soprou Nezumi. "Porquê que não te calas por algum―não, para sempre," sussurrou na orelha do homem vindo de trás. Nezumi sabia quão medo este sussurro instalava na pessoa a quem estava ser apontada a faca. Também sabia quão efetivo esse medo era a destabilizar a vítima.
O homem estremeceu.
"Oh... não, v-vá lá, espera um minuto. Não tens de usar uma faca para me silenciar. A sério, eu honestamente lamento. Vou pedir desculpa se te ofendi. Desculpa."
"Nezumi recuou e guardou a faca. O homem perscrutou a garganta e moveu os lábios. Um longo suspiro escapou de entre eles. 
"Deuses, impaciente apesar da aparência, não és? Eu julguei que terias modos mais graciosos."
"Eu reservo as minhas maneiras e a minha graça para outras pessoas que também são graciosas. És um ladrão. Tentaste escapar com os pertences de um estranho. Penso que mereces muito mais um corte através da garganta do que maneiras delicadas."
"Já alguma vez mataste antes?" O homem olhou para Nezumi por entre as sobrancelhas. "Alguma vez mataste um homem com essa faca, jovem?"
"Não sou obrigado a responder a um ladrão."
"Não, não me interpretes mal. Não estava a tentar roubar as tuas coisas."
Nezumi encarou-o olhando para baixo inexpressivamente.
"É verdade," insistiu o homem. "Acredita em mim. Aqui, isto é a prova."
O homem introduziu a mão na sua sacola de pano e começou a tirar um item após o outro. Havia diversos frascos de medicamentos, um saco de carne defumada, um cântaro de água, uma fatia de pão embalada, um pedaço de queijo, pedras de sal, e uma pequena bolsa. O homem abriu a bolsa e mostrou-a a Nezumi. Estava cheia até às costuras com moedas de ouro.
"Vês? Lamento dizê-lo, mas estou ligeiramente em melhores mãos do que tu. Eu não preciso de roubar as tuas coisas. Espera que compreendas agora."
"Não compreendo de todo." Nezumi encolheu apenas o ombro direito. "Não quero saber do quão bem estás. Ainda assim tentaste afastar-te com as minhas coisas. É o facto que importa. Isso foi roubo e não há como contradizê-lo.
"Suponho que não se pode fazer nada se é isso que julgas que sou. Então este ferimento,"―o homem gentilmente tocou a sua testa―"é a minha maldição e marca de Cain. Já atravessei o inferno, fui recebido com esta ferida na testa e mordido por ratos. Não podes simplesmente considerar isso e dizer que já paguei a minha dívida?"
"Terrivelmente em teu favor, essa interpretação, não é?" Nezumi pendurou a sua carga sobre o ombro e sorriu de forma cansada. De repente, tudo parecia disparatado. Em breve o sol iria pôr-se. Ele tinha de assegurar um ponto onde dormir durante a noite. Não havia mais tempo a perder com uma conversa tranquila com o ladrão.
"Oh, partindo tão depressa?" O homem ergueu-se. Ele era resistente e alto. Estava vestido de cima a baixo com roupas brancas grosseiras, e calçava sandálias de couro sujas.
"Podes apostar que vou. Não tenho vontade de ficar a conversar com um ladrão."
"Já te disse que não sou um ladrão. Estava só a tentar descobrir uma coisa."
"Descobrir?"
"Sim, descobrir de onde tu vieste."
"E o quê que farias com essa informação?"
O homem endireitou-se. "Não, eu só pensei... que apenas talvez, tu pudesses vir de No. 6. Foi só uma ideia."
No. 6.
Ele não esperara ouvir esse nome cá fora.
No. 6.
A cidade artificial que alguns chamaram de utopia, que supostamente devia ter incorporado o intelecto e esperança da espécie humana, rapidamente se tinha transformado num monstro violento. A cidade desintegrara-se como se tivesse sucumbido ao peso da sua própria fealdade.
Nezumi, esperarei por ti aqui. Continuarei à espera. 
A voz de Shion ecoou profundamente nos seus ouvidos.
"Ah, estou a ver. Então tu és daquela cidade." O homem levantou-se de um salto e tentou agarrar a mão de Nezumi.
"Não me toques." Nezumi afastou bruscamente o braço que lhe foi oferecido. Não tencionara fazê-lo com muita força, mas o homem cambaleou para trás e afundou um pé na água.
"Não é preciso ser tão hostil," disse o homem. "É só que que se tu és um residente de No. 6, há um monte de coisas que gostaria de te perguntar."
"E eu tenho menos que um grão de areia que valha a pena dizer-te. Não sou um cidadão de No. 6."
"Mas sabes coisas sobre ela. É verdade que agora essa cidade está destruída?" A expressão do homem denotava uma tensão óbvia. Os cantos dos olhos estavam voltados para cima, e tremiam ligeiramente.
"Tenho ouvido rumores por todo o lado, mas ninguém sabe a verdade. E eu acho que tu sabes. Vi comida empacotada a vácuo e uma lanterna de iodo na tua mochila. São de No. 6, não são? Não consigo pensar em mais nenhum lugar onde possas ter conseguido isso."
Na véspera da partida de Nezumi, Karan e Shion empacotaram todo o tipo de coisas nas mochilas de Nezumi, Karan com a cara de uma mãe que via o seu filho partir, e Shion em silêncio obstinado.
Estamos realmente a dizer adeus.
Nezumi tinha finalmente sentido a realidade da sua partida na carne enquanto observava o perfil de Shion, com os lábios dele pressionados numa linha tensa, quase amuada.
Amanhã, irei numa jornada. Shion vai ficar, e eu vou partir.
As suas duas vidas, conectadas quase milagrosamente há quatro anos atrás, estavam agora a separar-se e seguir os seus caminhos independentemente. Nezumi e Shion tinham vivido juntos por menos de meio ano. Era um período de tempo muito curto em comparação com os dias que ele tinha passado sozinho até então, e provavelmente com os dias que se seguiriam. Foi uma fase breve, ainda que intensa.
Haverá algum período no futuro mais intenso e bem-definido que este que eu passei com ele?
Nezumi abanou a cabeça. No. 6 tinha caído. Ele tinha concluído aquilo que almejara.
Então tudo bem.
Shion era uma pessoa do passado. Apesar de permanecer nas memórias de Nezumi, e de nunca vir a desaparecer, não estava envolvido com o seu presente.
Tinha de desenhar uma linha. Se não o fizesse não seria capaz de seguir em frente. Não seria capaz de viver no presente se estivesse enredado no passado.
Ele já teve o suficiente. Suficiente de arrastar o passado atrás de si e suportar o seu peso. Não queria mais disso.
"Vamos lá, não me vais responder?" Um tom suplicante rastejava na voz do homem. "Ouvi rumores. Imensos deles. Ouvi dizer que No. 6 tinha caído, mas também ouvi dizer que isso era tudo uma mentira, e que a cidade continua lá, continua a prosperar. Não sei dizer qual das histórias é verdadeira ou falsa."
"Podes sempre ver por ti mesmo."
"O homem inclinou o queixo para trás e a sua garganta roncou.
"... Mas No. 6 é uma terra bem distante."
"Fica só a seis meses de caminhada. É bem próxima."
"Meio ano... só de pensar nisso fico cansado." O homem deu um suspiro tão longo que o seu corpo pareceu encolher um pedaço.
"Não és um viajante também, velho? Ou não me digas que vives nesta selva?"
Os lábios do homem reviraram-se revelando parte dos seus dentes, que eram surpreendentemente brancos. Nem o seu tom nem a sua voz carregavam o ar deplorável de antes.
"Oh, eu não seria tão incrédulo. Deve ser um local mais confortável onde viver do que pensas."
A terra era desabitada por humanos há muito tempo, a não ser pelas seis cidades e os seus arredores―assim tem sido dito há anos.
As pessoas construíram as seis grandes cidades em busca da localização, terra, e condições de sobrevivência ideais. Aqueles que não conseguiam entrar não tinham escolha a não ser morrer, ou apegarem-se às suas vidas pendurando-se nas margens das cidades.
Mas após vaguear pelo deserto, Nezumi apercebeu-se que nem todo ele era feito de terras inóspitas que inibiam qualquer chance de sobrevivência. Havia mais verde, mais oásis do que ele vira antes quando vagueara com a mulher velha; havia mesmo mais riachos dispersos, campos de relva e pântanos.
Parecia que o ambiente estava a recuperar de um momento para o outro e rapidamente, apesar de Nezumi não saber dizer se a melhoria provinha da terra a exercer a sua própria força ou de algo que era simplesmente temporário. Nezumi achava que ninguém seria capaz de dizer.
Mas ele sentia uma coisa: tanto a terra como a humanidade eram resilientes.
Os humanos estavam a alcançar fontes de água próximas e a estabelecer pequenas residências. Eles irrigavam a água e aravam os campos, plantavam sementes, criavam gado, produziam crianças, e tentavam criá-las. Apesar de viverem em condições extremamente duras, estavam a estabelecer as suas vidas em separado das seis grandes cidades.
Shion, o mundo é inconstante. Está sempre a mover e mudar de forma. Os teus olhos captaram esta mudança? Os teus ouvidos captara o som da mudança, os movimentos das suas entranhas?
Ele falou mentalmente para Shion, que provavelmente continuava no meio de uma difícil batalha numa cidade recém-nascida.
"Oh, já sei. Que tal isto: porquê que não ficas em minha casa esta noite, jovem? Vou dar-te hospedagem como um pedido de desculpas pela minha rudeza. Podes sentar-te e contar-me a tua história? É uma pequena casa de campo, mas eu tenho uma cama e um banho. É um ótimo alojamento por estes lados."
"Não vou aceitar."
"Porque não? É uma cama confortável e um banho quente."
"Podias oferecer-me uma banheira de mármore e ainda assim recusaria. Nem sequer quero pôr um pé na residência de um ladrão."
"Como eu disse antes, não sou um ladrão. Em No. 6 era―" o homem calou-se abruptamente. Nezumi podia claramente escutar o relinchar de um cavalo e passos humanos. Eram vários cavalos e homens. O ar de repente carregava um odor a agouro.
"Oh, não. Vieram atrás de nós." A cor esvaiu-se do rosto do homem. Numa tentativa para escapar, tropeçou nos pés e aterrou com a parte inferior.
"Ali, estou a vê-lo! Ali está ele!" Três homens apareceram, vasculhando através dos arbustos. Todos os três eram de um tamanho imenso. Um deles era moreno, e os outros dois tinham pele clara com uma tonalidade rosada.
"Encontramos-te, fraude! Não penses que podes escapar desta com vida." O homem moreno ergueu um braço espesso. A sua agressividade animalesca era esmagadora. "Mas que raio de elixir é este?" rugiu ele. "É só água colorida! Pára de te divertires com a nossa cara."
"Derruba-o!"
"Acaba com ele!"
Os dois homens de pele clara gritaram ao mesmo tempo. Um deles tinha o seu cabelo cinzento atado num rabo de cavalo, e a  cabeça do outro estava rapada.
"Enganaste-nos para conseguir dinheiro. Acho que ninguém terá problemas se acontecer de acabares morto."
"E-espera! Espera um minuto. Interpretaste mal. Esse remédio é mesmo um elixir. T-tu deves ter cometido um erro enquanto o preparavas―"
"Calado! Ainda tens lata para mentir, hum?" berrou um.
"Rasga-lhe a boca e arranca-lhe a língua para nunca mais falar de novo! E enquanto o fazes, parte-lhe dois ou três dentes!"
“Eeek!”chorou o homem. "P-Por favor, vamos acalmar-nos e falar sobre isto sem recorrer à violência. E-Eu devolvo-vos o dinheiro!"
"Dinheiro?" o homem moreno sorriu afetadamente. Era a expressão perfeita para um vilão de teatro. "É claro que o devolverás. Vou tomar o meu tempo com o dinheiro após acabar contigo."
"Ahhhhh, ajuda! V-Vá lá, jovem! Ajuda-me!" O homem olhou para ele com um olhar suplicante.
"Hum? Quem és tu? És amigo desta fraude?" Os olhos do homem de rabo-de-cavalo incharam ao fuzilar Nezumi.
"Nunca. Estava só de passagem. Até à vista." Nezumi voltou costas ao homem. A última coisa que queria era envolver-se numa luta, muito menos uma disputa envolvendo um ladrão.
"E-Espera! Por favor, não me deixes!"
"Calado!"
Escutou o som abafado de carne a bater contra carne atrás dele. Ouviu alguém a colapsar no chão.
"P-Para... Ajudem, por favo."
"Uma fraude como tu devia simplesmente confessar o seu crime, Shion."
Os pés de Nezumi pararam.
"Disseste Shion?" voltou-se.
O homem veio a rastejar até ele, sangrando do canto da boca. Ele agarrou-se a Nezumi, suplicando por ajuda outra vez e outra vez.
"O teu nome é... Shion?"
"Eu―é o que chamo a mim mesmo, mas..."
"Não é o teu verdadeiro nome."
"É o nome do meu filho. E-Ele é um bebé adorável, tal como uma flor de áster."
"O nome do teu filho?"
Impossível. Poderá ser?
"Ei, miúdo." O homem com rabo-de-cavalo caminhou a passos largos até ele. "Se estás só de passagem, é melhor trazeres esse homem até nós e ir embora. Ou então―"
"Ou então, o quê?"
O de cabelo preso estalou os dedos enquanto a sua face se arreganhava num sorriso.
"Ou então serás metido na confusão juntamente com ele."
"Ou, acho que vou declinar a oferta, se não te importares. Não gosto realmente de me meter em assuntos sujos."
"Ei, amigo." O homem moreno contorceu o rosto no mesmo tipo de sorriso vulgar. "És na verdade agradável de ver de perto. É um desperdício mandar-te para debaixo da terra. Porquê que não vens connosco? Vamos dar-te um bom bocado."
"O quê, não te apercebeste que eu era belo até me veres de perto? Aparentemente ver ao longe não é uma das habilidades que te foi dada, além da aparência."
"O que raio acabaste de dizer?"
Nezumi pouso a sua mochila e deixou escapar um pequeno suspiro. E é assim que as coisas acabam. Shion, o teu nome faz-me sempre ficar envolvido em algum tipo de conflito. Espero que tenhas noção disso.
"Virando contra nós, hã, pequeno bastardo?"
"Quem me dera não ter de o fazer."
"Ah, bem, também serve. Vamos apenas bater-te até te acalmares. Depois de nos livrarmos da fraude, teremos tempo para aproveitar contigo. 
"Não com a pare, porém. Essa vai trazer-nos dinheiro."
"Eu sei. He he, encontramos uma jóia." O homem moreno lambeu os lábios. Depois cerrou o punho e investiu em frente. Os seus movimentos eram praticados e suaves, como os de alguém que estava habituado à violência e a lutar.
Nezumi recuou um passo e assobiou. Hamlet irrompeu do seu cabelo e lançou-se à cara moreno diante de si.
"Argh! O que é isto?!"
Antes de o homem moreno conseguir agarrar Hamlet, Nezumi enfiou o joelho no estômago do homem. O corpo enorme do homem moreno caiu no chão sem um som. Nezumi saltou por cima do homem caído e dirigiu-se diretamente ao do rabo-de-cavalo.
"S-Seu bastardo―"
O rabo-de-cavalo abateu-se sobre ele, os seus olhos esbugalhados. Nezumi já tinha uma ideia do ritmo. Esquivou-se ao golpe, deslizou próximo to homem e martelou com a lâmina na sua mão na garganta do homem. O de cabelo amarrado inclinou-se para trás antes de colapsar sobre as costas. Ele, também, era incapaz de levantar muito mais que um choro.
"Oh, deste conta―" O homem careca, o único que restava, desembainhou uma adaga. "Vou esmagar-te."
Os movimentos do homem careca era ligeiramente menos ágeis que os dos outros dois. Nezumi girou à volta para ficar atrás dele, e enrolou o braço em torno do seu pescoço, estreitando o aperto.
A adaga caiu a seus pés. Nezumi chutou-a em direção à fonte. Um instante depois, ouviu um claro splash.
"Uma faca não é algo para balançar por aí. Sugiro que adquiram mais algum treino." Nezumi apertou o seu estrangulamento ainda mais. Toda a força deixou o corpo do homem careca. Quando Nezumi desenrolou o braço, o homem caiu sob os joelhos com um arquejar abafado.
Hamlet apressou-se a subir ao ombro de Nezumi e chiou suavemente.
Ele ouviu aplausos.
"Brilhante. Parecia que eu estava a assistir a um espetáculo. Incrível. Simplesmente deslumbrante. Foi um bom trabalho. Ei, o que estás―"
Nezumi arrebatou a bolsa de moedas de ouro da mochila de pano do homem e colocou-as na mão do homem moreno. O homem moreno gemeu fracamente e ergueu um pouco a cabeça.
"Desculpa por isso. Podes tomar o dinheiro como um pedido de desculpa pelo que ele fez e riscá-lo da lista? Por favor."
O homem moreno pestanejou. Pareceu acenar muito ligeiramente.
"E-Ei! Isso é demasiado. É o meu dinheiro!"
"Desta maneira não haverão rancores. Ou preferias que estes homens te seguissem para onde quer que fosses? Deixa-me dizer-te que estes tipos são tenazes."
O homem encolheu os ombros, e concluiu batendo palmas.
"Estou a perceber. Mas de qualquer forma, tu certamente fizeste um trabalho brilhante ao lidar com ele. Sinto-me humilhado."
"Foste um cidadão de No. 6?"
As mãos do homem congelaram. Sem a sua conversa fiada e as palmas, o silêncio parecia ecoar nos ouvidos de Nezumi.
"Responde-me. Viveste naquela cidade?"
"... Sim, vivi. Mas disse as minhas despedidas há muito, muito tempo atrás."
"Porquê?"
"Porquê?" Hum, vamos ver. Porque aquela cidade era falsa, jovem. Se é falsa, sempre acabará por começar a deslindar um dia. Eu sabia que No. 6 iria provavelmente começar a apertar a sua vigilância e tornar-se ainda mais dominadora na sua tentativa de se manter junta. Não achei que pudesse ficar sendo sufocado dessa forma."
Este a ver. Então este homem viu através da verdadeira forma de No. 6 e do seu destino.
"E escapaste da cidade sozinho, deixando o teu amado pequeno rapaz para trás."
Não pude convencer a minha esposa a partir. Ela recusou-se a deixar No. 6 comigo. Acho que ela não confiou em mim completamente."
Um julgamento suficientemente perspicaz. Se ela tivesse vindo com alguém tão irresponsável como o teu tipo, provavelmente agora ela seria uma pilha de ossos."
"Não és exatamente cortês, pois não? Mas seja como for, é verdade? No. 6 foi realmente destruída? Foi, não foi? Um mundo artificial como aquele nunca seria capaz de existir na realidade por muito tempo. Deve ter-se desintegrado a partir da base... é verdade, não é?"
"Se for, o quê que pretendes fazer?"
"Vou para casa."
"Casa? Para No. 6? Fica um quanto distante."
"Oh, seis meses de caminhada irão levar-me lá. Não é lá grande coisa. Tu próprio o disseste."
"Ansioso por ver a tua esposa e filho de novo, hum, mesmo após abandoná-los uma vez? Uma coisa bastante egoísta de se fazer, eu acho."
"Não... não é nada disso." O homem ficou em silêncio por algum tempo, depois ergueu o rosto com determinação. "Estou a dever-te. Salvaste-me a vida. Então deixa-me contar-te uma coisa. Vem cá."
"O homem convidou Nezumi a sair do arvoredo. Três cavalos estavam amarrados e a pastar. Tinham uma tonalidade castanho escuro.
"Ninguém nos vai escutar aqui. Toma isto." O homem tirou uma bolsa de debaixo da camisa. Ele tinha aparentemente andado com ela pendurada ao pescoço. Tanto o tecido como a corta da bolsa estadas gastos e desbotados.
"Isto..."
Dentro havia uma rocha um pouco menor que os frutos dos arbustos. Nezumi nem precisou de ver de perto para confirmar. Isto era...
"Isto é... minério de ouro?"
"Sim. Ouve-me: há depósitos de ouro em torno da área de No. 6. Não sei quão ampla é a área, mas penso que há uma quantidade de ouro considerável lá escondida."
"Impossível."
"É verdade. Descobri-o quando era mais jovem. Posso estar neste estado agora, mas eu já fui um geólogo. Nós investigamos todo o solo em torno de No. 6, e esta foi parte da descoberta."
"Mas tu puseste-o sob sigilo e não o reportaste."
"É claro que não. De qualquer forma, porquê que o teria de reportar? Ouro nunca traria prosperidade a No. 6. Iria resultar em centenas de problemas sem uma única coisa boa que valesse a pena."
"Consigo ver isso." Nezumi sentiu um ligeiro arrepio.
"Tanto quanto sei, o minério ainda não foi descoberto. Não tenho ouvido rumores nenhuns sobre qualquer descoberta. Além disso, No. 6 agora está destruída, então o local deve estar no auge da confusão. O que significa que eu posso entrar e sair livremente. Posso até mesmo escavar ouro há luz do dia e ninguém iria repreender-me."
"Espera um minuto. Onde fica a mina de ouro de que estás a falar?"
"Uma faixa de terra que vai de norte a sul. Parte disso alcança até a região que costumava ser chamada de Terra de Mao. Nada disso é visível acima do chão. O ouro repousa longe, profundamente enterrado na terra. Mais―"
O homem baixou a voz e continuou num murmúrio baixo, como se para aumentar a tensão.
"Não posso afirmar isto com certeza ainda, mas... há também a possibilidade de que haja lá um depósito enorme de metais raros precisamente sobre No. 6. Níquel, gálio, zircónio, nióbio, índio... Não posso dizer muito mais, mas o que achas? Grandes notícias, não são?"
Os arrepios de Nezumi pioraram ligeiramente.
"...É bom de ouvir como um conto de fadas. Foi assim que enganaste as pessoas durante todo o caminho até agora, não foi? Como fraude que és."
"Não sou uma fraude. Sou aquele que espera."
"Aquele que espera?"
"Sim, tenho estado a aguardar―pela queda de No. 6. E parece que a hora finalmente chegou. Tenho de fazer preparações para regressar a casa. Ei, porquê que não vens comigo? Não podia pedir por um parceiro melhor. Vamos voltar para No. 6 e clamar aquela enorme fortuna para nós próprios."
Os olhos do homem reluziam com um tipo de brilho repugnante, nojento. Não era o tipo de brilho vívido que iluminava o caminho a seguir. Os seus olhos luziam vagamente das suas profundezas numa tentativa de encantar a presa para se aproximar.
Este homem... Nezumi apercebeu-se de que tinha rangido os dentes. Este homem não está alienado, nem está a tentar enganar-me. Ele está apenas a dizer a verdade―pelo menos a verdade como se mostra a ele.
"E o que planeias fazer com essa riqueza? Apreciar um retiro luxuoso?" Não. Não é isso que este homem quer.
"Vou comprá-la."
"Comprar o quê?"
"No. 6."
Por um instante, a voz e respiração de Nezumi ficaram-me presas na garganta. Tudo o que ele podia fazer era fitar, aturdido, o homem. 
"Comprar No. 6? O que queres dizer?"
O homem guardou de novo o minério na bolsa e sorriu amavelmente.
"Escuta, jovem rapaz. Se tu planeias dominar o mundo, não precisarás de exércitos, preceitos, ou de sistemas meticulosos de vigilância e controlo. Precisas de riqueza. Riqueza é a única arma eficaz, a mais significativa. No. 6 não captou bem essa parte. Bem, a cidade também teve o azar de ter um líder idiota."
"Tencionas tornar-te o governador de No. 6 com dinheiro?"
"Oh, não sei." O homem levantou cabeça para o lado. "Quem sabe o que o destino irá trazer? Não sou uma pessoa tão ambiciosa. Não aspiro a tornar-me um imperador ou um governante."
"Então porquê?"
"Por entretenimento. Posso causar bagunça na vida das pessoas com estas duas mãos. Seria divertido. Simplesmente divertido. Nenhum jogo poderia ser melhor que este."
"Por..." Nezumi fitou firmemente o homem. Ele não era como Shion. Shion nunca encarou a vida das pessoas como algo para brincar. Ele nunca as manipulou por diversão.
"No. 6―essa cidade está finalmente no caminho da reconstrução. Eles estão a tentar estabelecer uma nova cidade-estado, e tu vais simplesmente causas confusão porque tens vontade?"
"Reconstruir? Novo? Impossível. Não importa quem é envolvido e de que forma. Um estado é um estado. Irá eventualmente fortalecer o seu governo e tentar colocar as pessoas sob o seu mandato. E essa a verdadeira face de um estado, e a história da humanidade já nos provou esse facto. No. 6 pode mudar de roupa tantas vezes quantas quiser, mas continua a ser No. 6, tudo a mesma coisa. Se houver alguma mudança, será se pessoa no núcleo de No. 6―o seu governador―é ingénuo ou inteligente. Ele irá definir os seus métodos de como mandar no lugar: se for idiota, vai deixá-los óbvios; se for inteligente, será ágil e discreto. O idiota irá eventualmente destruir-se a si mesmo, mas um homem com um intelecto decente irá gradualmente ganhar completo controlo de No. 6. É esse o tipo que deves temer mais. Então?"
“...Hã?”
"Que tipo de pessoa está envolvida na reconstrução de No. 6? Do teu ponto de vista, é idiota? É inteligente?"
Nezumi negou com a cabeça lentamente. A base do seu pescoço doía levemente.
"Ele é brilhante, e detém um intelecto substancial. Não consigo imaginá-lo a tornar-se o tipo de governante de que estás a falar."
"Ah, tens grande apreço por ele, estou a ver. E dever conhecer o homem―é um homem, certo?―deves conhecê-lo bem?"
Por um lado, conheço-o melhor do que ninguém. E por outro lado, não conheço nada de todo.
"E também acreditas nele."
Eu acredito nele. Nada no mundo valeria a pena acreditar se eu não pudesse acreditar em Shion. Eu acredito nele. Mas também tive medo dele, não tive?
Nezumi permaneceu silencioso. O homem olhou de relance para ele e avançou.
"Que tal? Vem comigo. Não tenho grande certeza quanto aos metais raros, mas há definitivamente ouro."
Nezumi tomou um passo firme para trás.
"Não obrigado. Eu irei para onde quer que queira ir."
"Estou a ver... é uma pena." O homem sorriu como se estivesse realmente desapontado. "Mas suponho que não possa fazer nada. Vou embora, nesse caso. Acho que vou levar emprestado este cavalo aqui. Considerando a quantidade de ouro que paguei lá atrás, acho que ele não se vai importar se eu levar um cavalo."
O homem tomou as rédeas do cavalo cinzento e deu a volta.
"Uma última coisa. As pessoas mudam, rapaz. Esse homem em que tu acreditas vai mudar, também. Qualquer um que se erga no topo de um estado vai mudar. Se não mudar, será destruído. Lembra-te disso."
Nezumi tocou na faca atada ao seu cinto. Talvez se eu acabar com este homem aqui... se eu acabar com ele, eliminarei um rebento que de outro modo traria problemas a Shion.
Os seus dedos sentiam comichão. Nezumi entrelaçou os dedos.
Eu nunca te perdoaria por magoares, muito menos matares, alguém por minha causa.
Nezumi, não o mates. Não quero que cometas um crime pelo meu bem.
Shion mantinha o seu braço atrás e implorava-lhe desesperadamente.
Nezumi, não o mates.
É verdade. É o que tu dirias. Eu sei que dirias isso e que me pararias. Sempre foste, e sempre serás, um benfeitor ingénuo.
Shion...
"Bem, se o destino nos juntar, encontrar-nos-emos de novo." O homem montou no cavalo com um salto, e cravou os calcanhares nele. O cavalo cinzento relinchou e começou a mover-se. O homem e o cavalo desapareceram num rasto de poeira.
O vento soprava, fazendo os arbustos balançar.
As nuvens cobriam o céu enquanto a terra se revestia da escuridão da noite.
Shion.
Uma pequena fenda surgiu nas nuvens, revelando um céu profundamente violeta.
Um estrela solitária reluziu.
Numa ponta distante desse céu estava No. 6.
Nezumi cedeu ao vento enquanto fitava atentamente a estrela lá em cima.



Que acharam? Um volume bastante agonizante, mas perfeito ao mesmo tempo. Bom, suponho que se pode dizer isso da totalidade de No. 6.

5 comentários:

  1. Respostas
    1. Obrigada! *.* Acha que podia dar uma ajudinha com a divulgação? Como não há muito material em português, e nem toda a gente sabe do mangá e novel (que são melhores), gostaria de conseguir um melhor alcance. Sankyuu :3

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    2. Claro que posso! Vou divulgar em algumas c-box e no meu blog!!!

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  2. "Shion era uma pessoa do passado. Apesar de permanecer nas memórias de Nezumi, e de nunca vir a desaparecer, não estava envolvido com o seu presente."
    Que frases agonizantes <\3
    É tão bonito ver a conexão dos dois, assim como com o Shion no capítulo passado, cada ação de um reflete o outro. Céus, como eu amo o relacionamento desses dois! Seria tão bom uma continuação com essa deixa do pai do Shion (apesar de não saber exatamente como seguiria a trama). Queria tanto ter mais deles e ver o "reunion will come" acontecer!! Não apenas ficar na imaginação, mas ver acontecer realmente!!

    Obrigada, muito obrigada pela tradução! :3

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    1. Toda vez que lembro de no.6 choro e penso, quando reunion will come vai acontecer :,,(

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