11.9.15

Tradução da novel Beyond - cap 3


E agora cheguei com o terceiro capítulo de Beyond traduzido ^^ Como de costume, para quem não sabe o que é Beyond e não está a par do meu projeto, aqui estão mais algumas informações: www. Pessoalmente, este é o meu capítulo preferido, do ponto de vista de Shion, e possivelmente o mais preocupante dos quatro. Retrata alguns momentos bastante duros durante o primeiro ano que Shion passou sem Nezumi, demasiado ocupado até mesmo para sorrir, tendo de renunciar a alguns dos seus próprios ideais, e tendo imenso trabalho com a administração da cidade. Muitas pessoas ficaram bastante angustiadas após o ler, e trouxe até mesmo um comentário que achei uma vez - esse não irei traduzir, gómen - no blog onde estão em inglês todos os capítulos das novels {Nostalgia on 9th avenue}, e que expressa bem o que senti no momento. Começando já com ele:

No ... No, no, no. 
Why do it have to be this way? Why must it be like this? 
Would it be wrong for me to say, that even though he couldn't do anything else, Shion scares me. He shouldn't be that manipulative, he shouldn't be threathing another being - human as well as mice, dog or whatever else -that way. Not that way.
I know he couldn't do it any other way, because there's no other option. But no matter what; why, how ... Why, why, why? I keep saying it. Why?! 
Shion, oh Shion. You sure are fighting hard. But remember, no matter how hard you fight those around you - whether it's by violence or the even more scary; manipulation - you must fight yourself. You must remain Shion, 'Cause one day - one day both you and I are yearning after - he'll return. He made a vow, and you made a vow, Shion. Keep being you. Keeo being human. Keep fighting against yourself, for the sake of Nezumi. For yourself. For Karan, for Inukashi, for little Shion, for Rikiga, even for Yoming - for everyone in this sick world.
After all, Shion ... You are what we fear in this world. But you have to keep remaining you. If you don't, then one day when your blowing wind comes home, maybe he'll just pass by, and break his vow, as well as you broke yours. He'll fear meeting you, because he would never be able to kill you even if you became a monster even worse than those who were before.
Keep your promises. Don't try to make a utopia, 'Cause it will only end up in dystopia again. Make a city, for those who live, not for people to die. And fight against yourself. Fight until your own blood is running. Fight. Stay Shion, forever.
And then the day Nezumi comes home, he'll help you fight. And then you can leave. After keeping your promises, you can let gobof everything and leave - with the one person you can't keep being yourself without.

Assustador, não é? E ainda nem leram o capítulo ;) Mas como eu não conseguia acreditar que o Shion fosse fraquejar tanto após tudo o que tinha ultrapassado (com Nezumi, é certo, mas ainda assim com a sua própria força também), comecei a pensar e lembrei-me de algo que a maioria das pessoas não parece ter lembrado: O epílogo das novels principais, do volume 9 mais precisamente. Passa-se 4 anos depois da despedida de Nezumi e Shion, fica claro que Nezumi ainda não tinha regressado, mas apesar de tudo, Shion sorriu quando abriu a janela. Foi um sorriso extremamente sincero, confiante, terno, doce, em nada falsificado ou parecendo esconder qualquer tipo de corrupção. Aqui a imagem» www. Esse primeiro ano deve ter sido assustadoramente difícil para Shion, sim, mas tenho a certeza de que ele conseguiu ultrapassar os obstáculos à sua própria maneira, nem sempre perfeita, mas fiel a ele próprio. E certamente continuará bastante ocupado com o trabalho, mas como a própria Inu escreveu na carta, ainda consegue arranjar algum tempo para a ajudar a lavar os cães ;) Não se preocupem demasiado ao ler este capítulo, ainda há esperança.

E vamos à tradução!

Pequena nota: uma vez que optei por traduzir West Block para Bloco/Distrito Oeste, por uma questão de coerência, traduzi aqui Lost Town para Cidade Perdida. Para quem não sabe, é uma parte mais "humilde da cidade" para onde Shion e a mãe se moveram após Shion perder os privilégios por ter ajudado Nezumi a fugir, em criança. Mas deixei Moondrop em inglês, por ser uma referência importantíssima em tantos sites.

Segunda nota: isto são cravats» www

NO. 6 ALÉM

Dias de Shion

Estava a chover. A chuviscar―neblina, quase. Mas chuva era chuva, e ensopava as ruas durante a noite e as pessoas sem guarda-chuva. 
Antes de entrar em casa, Shion correu levemente a mão pelo cabelo. Gotas de água pingaram das suas madeixas branco reluzente. Estava mais molhado do que esperava. O agradável ar noturno de começo de primavera esgueirou-se dos seus pés. Se não se aquecesse depressa, provavelmente apanharia um resfriado. 
Shion sabia que iria, mas permaneceu especado em frente à porta, incapaz de se mover. Estada gelado. O seu ânimo pesado. Sentia-se relutante em encarar o rosto da sua mãe Karan.
A porta das traseiras da casa era de madeira. A pintura estava a desgastar em diversos pontos, e mostrava claros sinais do tempo. Numerosas vezes, Shion sugerira trocá-la por uma nova. Mas em todas as vezes, Karan negara com a cabeça.
"Esta serve. É robusta e forte. Além disso, não achas que tem um toque original? Acho-a muito melhor que aquelas horríveis portas metálicas brilhantes."
A sua mãe estava preocupada com o custo. Mas talvez ela realmente não se importasse com o aborrecimento de a renovar; talvez realmente sentisse uma ligação com a porta das traseiras usada. Shion compreendeu-o, então nunca falou novamente de trocar a porta.
Ela estava certa num sentido. A porta de carvalho espessa exalava um ar que raramente se encontrava em portas de aço padronizadas e de cores vivas. A maçaneta de bronze também era firme.
Essa porta não mudara em nada desde que Shion e Karan se haviam mudado para a Cidade Perdida da sua residência privilegiada em Chronos (na verdade, eles tinham sido exilados sem que lhes fosse dada outra escolha de moradia a não ser na Cidade Perdida, porém, estranhamente, nem Shion nem Karan sentiam a menor ligação pelos seus velhos dias). De facto, a casa inteira num tinha mudado muito num todo. 
Passara-se um ano desde a destruição da cidade-estado, No. 6. A confusão permanecia, e toda a gente continuava a tatear às escuras perante a adaptação dos residentes de No. 6 e dos não residentes aos seus novos arredores sem muros. 
Os termos "interior" e "exterior" (da muralha) apodreceram, e ambos demarcavam quem as pronunciasse como um estrangeiro que falasse uma lígua diferente. Os Internos aperceberam-se de que tinham sido habilmente e rigidamente controlados, e apreciavam estar livres de uma sociedade vigilante. Mas em simultâneo, insistiam que não queriam abrir mão da sua riqueza―que não queriam que as suas vidas atuais fossem perturbadas. Os Externos criticavam com mordacidade os crimes de No. 6, que se construíra a si mesma e prosperara numa base parasita. Exigiam igual distribuição de riqueza e uma compensação pelo abuso que tinham sofrido.
Atualmente, com o Comité de Reestruturação no centro, No. 6 (é claro, algumas vozes queriam um novo nome para a cidade, mas ninguém podia dispensar tempo a considerar nomes. Havia ainda o problema da relação entre as cidade; por conveniência, No. 6 continuava a ser chamada No. 6) procurava restaurar a paz e a ordem; por estabelecer rapidamente os corpos administrativos, judiciais e legislativos; e pela segurança da população. 
Por enquanto, iriam usar as instituições governamentais de No. 6. O Bloco Oeste seria designado como uma ala especial, e apressar o estabelecimento de sistemas de suprimentos essenciais à vida. Iriam construir uma polícia temporária para dissolver o exército e manter a paz.
Havia doze membros no Comité de Reestruturação―antigos residentes de No. 6, e antigos representadores de cada Bloco. Sob o Comité havia doze Sub-comités, com um membro da delegacia a dirigir cada um deles. Shion era um dos membros mais jovens do Comité.
Ano passado, tudo tinha mudado. Como uma onda arrebatadora, como a água torrencial de uma corrente, como uma avalanche, tudo tinha sido engolido, absorvido em espiral, dilacerado e virado ao contrário. As coisas apenas se tornariam mais ferozes no futuro.
Shion suspirou, e fitou separadamente a porta envelhecida, a maçaneta de bronze, e a pequena janela da qual derramava uma luz ténue.
Assim, algumas coisas nunca mudavam. Independentemente de qual caminho a humanidade tomasse, haveria sempre algo que nunca mudaria, no interior e exterior das pessoas.
Shion, quero que continues a ser quem és.
O murmúrio de Nezumi reviveu dentro dele.
Luta. Luta contra ti mesmo.
Não era uma ordem ou um comando. Era um apelo.
Nezumi implorara a Shion enquanto dizia estas palavras. Shion, nunca mudes.
Poderei corresponder os sentimentos que Nezumi expôs diante de mim?
Shion fechou os olhos. Visualizou o bazar. Tinha sido restaurado num mercado livre, e agora oferecia vastas opções e diversos bens frescos, impensáveis no passado. Karan, por vezes, também fazia lá compras.  
"É vinte a trinta por cento mais barato que nas lojas da cidade. Talvez não sejam os mais atrativos, mas não se consegue achar produtos mais saborosos em nenhum outro lugar." Apenas ontem, também, ela rira enquanto exibia orgulhosamente as suas maçãs disformes e pepinos contorcidos. 
Mas a mãe não sabe―a Caçada teve lugar no mercado. O exército de No. 6 baleou essas pessoas sem piedade―atingiu-as através da testa, do peito―sem sequer pestanejar. 
O ar preenchera-se com desespero, o medo, e com os gritos angustiados das pessoas; Tudo estava manchado com o fedor do sangue dos corpos caídos à direita e à esquerda. Um braço projetava-se dos detritos caídos; um tanque do exército esmagou uma perna rasgada ao passar por ela; botas pisaram quem continuava vivo e suplicava por ajuda. Foi a primeira parte do inferno que Shion teve de testemunhar mais tarde. 
A mãe não sabe disso. E era um alívio ela não saber. Quando ele fechava os olhos, podia recordar os resquícios desse dia, não menos vividos do que quando os experienciara. Não apenas o mercado. Nunca seria capaz de esquecer o rosto das pessoas amontoadas no compartimento de carga; os olhos do homem que implorara a Shion para acabar com isso; os corpos empilhados e o cheiro a morte que persistia em cercá-lo; os muros do Edifício Correlacional, a desmoronar em chamas; o fumo negro que floresceu em No. 6. Nunca poderia esquecer. Essas imagens tinham-no marcado para a vida, e nunca desapareceriam.
E o facto de o seu dedo indicador ter puxado um gatilho. O facto de ter intencionalmente, não por acidente, matado outro homem.
Shion abriu os olhos e olhou para o céu. Claro, não foi capaz nem de ver as estrelas nem a lua. Uma gota de chuva escorreu pela sua bochecha. Tocou os seus lábios e rolou face abaixo. 
Ah, estou vivo. De repente, foi atingido com a percepção da vida dentro dele. Sentia-a: neste exato momento, estava sem dúvida vivo. A realidade esmagadora quase o sufocava. Queria gritar.
Estou vivo. Estou vivo. Estou vivo. Estou vivo. Estou vivo.
Nezumi, estou vivo, afirmou para o céu noturno, isento de luz. Estou vivo e há tua espera. Mesmo nesse cenário infernal, senti-me atraído pelos teus olhos, pelas tuas palavras, pelos teus gestos, pelos teus pensamentos―que me suportaram. Graças a isso, fui capaz de sobreviver. E ainda agora, continuo vivo. 
Estás a ouvir-me, Nezumi? Estou vivo.
Um cão ladrou ruidosamente. Vinha de dentro da casa.
O quê, um cão? Espera, poderá ser
A mente de Shion foi arrancada do passado de volta ao presente. O seu coração palpitou com força. Empurrou a porta aberta. Foi recebido com um monte de latidos. Eram latidos de alegria e afeição, não agressividade ou apreensão. Um cão com o pêlo às manchas levantou-se e saltou ao pé de Shion enquanto ladrava. Abanava a cauda com intensidade e cravou o focinho contra a coxa de Shion. Os seus olhos negros continham ainda mais felicidade que a voz.
"Os cães atiram-se aos teus pés, como sempre, hã?"
"Inukashi! E Rikiga-san, tu também!"
Rikiga fez um trejeito exagerado de onde estava no sofá. "Olá, Shion. Ligeiramente rude da tua parte reparar em mim depois do rapaz-dos-cães, não achas? A maneira correta de reagir seria choramingar, 'Oh, Rikiga-san!' e dirigires-te a mim, como esse cão. E então acrescentaria, 'Oh, Inukashi. Estás aqui também,' como uma ideia tardia."
"Ah!" Inukashi rangeu os dentes e gargalhou. "Rude? Que interessa? Eu "e" tu não precisamos de maneiras, velhote. Tal como o meu cão não precisa de um casaco de pêlo. Para quê que as maneiras servem? De certeza não me enchem o estômago."
"Cala-te," ripostou Rikiga. "Não me juntes com o teu tipo. És praticamente meio-animal. Eu sou um homem correto e justo, e um cavalheiro."
"Cavalheiro? Uau, eu não sabia que 'cavalheiro' se referia a homens que não conseguem viver sem dinheiro, mulheres e bebida. Huh, bem, aprendi algo novo. Desde quando é que os significados mudaram tanto? Em quê que o mundo se tornou?" Inukashi deixou escapar um suspiro longo e lamentoso.
Shiom rompeu a rir. Já fazia algum tempo desde que tinha ouvido Inukashi e Rikiga implicarem assim. Riu do fundo da barriga pela primeira vez em muito tempo.
"Vocês os dois não mudaram de todo."
"Ela tem demasiada convicção para um vira-lata," reclamou Rikiga. "Tem uma acusação pronta para tudo o que eu fizer."
"E tu és demasiado simples de espírito para um humano, velhote. Perdes as estribeiras e ficas com um mau temperamento a tudo o que eu digo. Cães são muito mais intelectuais. Na verdade, os cães são dez vezes melhor que humanos na cabeça e no coração, de qualquer forma. Além disso, acho que estás mais próximo de um macaco que de um humano, velho."
"Sim, acertaste," disse Rikiga zangado. "Sou um macaco. Avistar um cão enlouquece-me infinitamente. Sempre que vejo um, apetece-me rasgá-lo com os dentes. Roar!" Rikiga ergueu os braços e investiu contra Inukashi. Inukashi riu-se troçosamente  enquanto dançava agilmente para fora de alcance. 
"Meu deus, estão cheios de energia." Karan entrou. Rikiga congelou. Pigarreou para clarear a garganta de propósito e sentou-se numa cadeira. Levemente limpou algum pó imaginário das vestes do seu fato em rês peças, e sorriu amavelmente na direção dela.
"Mas por favor façam-no mais baixo." Karan embalava delicadamente o bebé nos braços. Parecia adormecido."
"Shionn!"
"Shh, Shion, tão alto não. Acabei de fazer Shionn adormecer, finalmente―hum, isso ficou confuso, não ficou?"
Shionn respirou suavemente, envolvido num cobertor antigo tão desbotado que era impossível dizer de qual cor fora originalmente. As suas longas pestanas lançavam sombras sobre o seu rosto, e os seus lábios carnudos estavam ligeiramente entreabertos. Se o êxtase tivesse uma forma corpória, então era o rosto adormecido dele. Trazia alegria a cada pessoa que o contemplava.
"Parece que está maior desde a última vez que o vi," comentou Rikiga.
"É porque está," disse Inukashi. "Agora está grande o suficiente para correr por aí e brincar com os cães. Em breve, será capaz de roer a carne dos ossos." Inukashi sorriu e depositou um beijo leve na testa de Shionn.
"Crias muito bem crianças, Inukashi." sorriu Karan. "Já vi muitos bebés durante a minha vida, mas sinto que é a minha primeira vez a ver um bebé parecer tão feliz enquanto dorme."
"Realmente acha isso, Mamã Karan?"
"Realmente penso. Ele confia em ti do fundo do seu coração, e tu és capaz de estar lá por ele e suportar a sua confiança. Vocês dois fazem uma família admirável."
Um corar leve despontou nas bochechas morenas de Inukashi.
"Quando o meu cão chegou a cada a carregar Shionn na boca, na verdade eu estava muito irritado," confessou. "Pensei em simplesmente abandoná-lo, fazer de conta que nunca o tinha visto. Bebés apenas são um peso. Realmente detestei Shion daquela vez por ter deixado esse fardo comigo."
"―Desculpa. Eu sei que foi irresponsável, mas... não tinha outra escolha a não ser deixá-lo contigo. Eu sabia que podia confiá-lo a ti."
Os olhos escuros de Inukashi voltaram-se para Shion.
"Shion, isso quer dizer―"
"Hum?"
"Quer dizer que confiaste em mim?"
"Sim." Ele assentiu. Não era uma fachada ou uma mentira. Na confusão da Caçada, quando pegou no bebé da mãe jovem, a única pessoa na mente de Shion foi Inukashi. Na verdade, Inukashi era a única opção que ele tinha. 
Inukashi vai fazer algo quanto a isso. Vai proteger esta pequena vida com tudo o que tem. Vai mesmo. Foi nisso que tinha pensado.
Inukashi sorriu. Ergueu um dedo e andou com ele às voltas.
"Confiaste em mim, e viveste com essa confiança. É o que estás a dizer, certo?"
"Sim. Acho que sim." Nezumi provavelmente fez o mesmo. Confiou em ti, e deixou tudo nas tuas mãos. Shion engoliu as suas palavras por dizer e calou a boca. Não sabia porquê, mas não queria dizer o nome de Nezumi ali.
"Ei, espera um minuto, Shion. Não estás a dizer que confiaste no rapaz-dos-cães acima de mim, estás?"
"Ah, não―não é isso que eu queria... Eu apenas não te consigo associar com bebés, é só isso, Rikiga-san."
"É claro que não," Inukashi intrometeu-se. "Porque se tu deixases o bebé com alguém como o velhote, o pequenino seria vendido no dia seguinte. Bebés vivos rendem um excelente preço, como sabes."
"O quê? Estás a dizer que as pessoas punham bebés à venda?" O sangue deixou o rosto de Karan. Rikiga apressou-se a dissipar as palavras de Inukashi. 
"Nã-Não―não, não, Karan, não é isso. Eu nunca faria tal coisa. Foi só uma brincadeira de mau gosto. Este idiota aqui faz sempre piadas insossas. Nem imaginas as dores de cabeça que me dá. Não o devias levar tão a sério."
"...É verdade," disse Karan incerta. "Tu nunca comprarias ou venderias bebés. É um absurdo, não é?"
"Absolutamente." Rikiga inchou o peito. "Karan, há uma coisa que eu quero que saibas: eu detive montes de negócios no antigo Distrito Oeste. Entre eles houve alguns que eram―ah, não tão dignos. Exato. Não eram dignos de todo. E é um facto."
Inukashi curvou os ombros. "Não queres dizer 'a maioria'? Acho que as revistas pornográficas eram o teu negócio mais decente. "
"Calado! ripostou Rikiga. "Porquê que não desapareces e vais roer algum osso de galinha ou coisa assim? Karan, escuta-me," implorou. "Eu nunca me atrevi a usar crianças ou bebés. Nunca usei pequenos para ganhar o meu pão diário. É verdade. Por favor, acredita em mim."
"É claro que acredito em ti," disse Karan. "Não consigo imaginar-te a olhares para jovens como um alvo para obter lucro."
"Karan." Rikiga corou e deu um passo para mais perto de Karan. "Obrigado. Sinto que a tua confiança em mim é todo o suporte de que preciso."
"Meu deus, Rikiga." Karan recuou meio passo antes de sorrir serenamente. "Não me lembrava de ti como alguém capaz de recitar uma deixa tão teatral. Tu falavas franca e diretamente, e eras cuidadoso com as palavras.
Inukashi assobiou.
"He he, a Mamã Karan fez um bom ponto. 'A tua confiança é todo o suporte de que preciso" a treta. Já nem se encontra essa fala em novelas baratas nos dias de hoje."
"O teu cérebro mestiço nunca leu sequer um livro antes. Ninguém pediu a tua opinião," disse Rikiga com azedume.
"O meu cérebro é muito melhor que o teu. Pelo menos não está a boiar em bebida."
"O quê que disseste?" pronunciou Rikiga ameaçadoramente.
"O quê? Tens problemas?" Inukashi disse de volta.
Fitaram-se um ao outro.
"Parem com isso, os dois," disse Karan exasperada. "Shion, não te limites a ficar aí a rir."
Karan agachou-se à sombra do sofá e gentilmente colocou Shionn num berço. O berço era de um modelo simples em vime sem enfeites, mas a sua forma arredondada era bela na sua simplicidade. Parecia muito velho, mas não demonstrava sinais de uso.
Uma pequena placa de ouro repousava na lateral.
Para Shion, o meu amado filho.
Apenas essa frase curta estava gravada nela.
"Hum? Mãe, isto é"
A mão de Karan embalou gentilmente o berço. "Sim. Eu usei isto quanto tu eras um bebé. Provavelmente não te lembras."
Ou lembro? Pensou Shion. Sinto que recordo ouvir uma canção para adormecer gentil enquanto era embaldo para diante e para trás, para diante e para trás...
"Nunca tinha pensado que alguma vez o tiraria e usaria de novo assim. Orgulho-me do trabalho extra que tivw para o trazer quando nos mudamos. "
Quando tinham saído de Chronos, a mobília e louça que podiam levar com eles eram grandemente limitadas. A sua casa, o seu mobiliário, os serviços, abundância, e a sua vida topo-de-classe haviam sido dados a eles precisamente porque Shion fora certificado como elite. 
Quando essa certificação foi rebocada, tiveram de devolver tudo aquilo que lhes fora dado por No. 6. Os pertences pessoais que Shion e Karan puderam levar com eles à Cidade Perdida eram surpreendentemente poucos. Havia um berço entre eles? Não. Shion teria notado se houvesse.
"Eu trouxe-o em segredo mais tarde e deixei-o num canto do sótão," disse Karan.
"Porquê que tiveste de o trazer em segredo?"
A mãe de Karan parou.
"Porque isto... foi feito à mão pelo teu pai."
A respiração de Shion ficou-lhe presa na garganta. Bloqueando o canal de ar. Quando exalou, a sua voz deslizou para fora juntamente.
"O quê? O meu pai?"
"Sim. O teu pai fez este berço para ti." Karan comprimiu os lábios e desviou o olhar de Shion.
"O pai era... um artesão?"
"Não. Um geólogo―era a sua ocupação principal. E acho que era muito bom com ela. Ele foi escolhido para ser um membro da equipa do Projeto de Restauração, afinal de contas."
Projeto de Restauração―foi um grupo de indivíduos escolhido para tornar No. 6 um paraíso na Terra, uma utopia. O major, que desejara tornar-se o governante absoluto de No. 6, foi um membro; Rou, o cientista que planeara ter a Deusa da Floresta Elyurias sob o seu controlo, foi um membro.
Mas as suas aspirações e futuros transformaram-se e separaram-se: Rou tornou-se um homem do subterrâneo; No. 6 transformou-se numa cidade monstruosa, derrapando ao longo do caminho da destruição.
E o próprio pai de Shion tinha sido um desses membros. Shion estava atordoado. Era tudo o que podia dizer. Estava atordoado.
"Mas mãe, tu disseste... tu disseste antes que o meu pai se perdeu com bebida e com mulheres, que era um caso sem esperança a um passo de se tornar alcoólico. Mas depois também disseste que ele era realmente gentil e sincero."
"Disse. Porque é verdade." Karan murchou ainda mais. Parecia uma criança carrancuda. "Gastou todo o dinheiro que obtínhamos, e embebedava-se o dia todo. Mal achava uma rapariga de que gostasse, começava um relacionamento com ela sem sequer pensar nas consequências... mesmo depois de casarmos, teve namorada após namorada..."
"Ter uma amante enquanto estava casado contigo, Karan―nem quero acreditar nesse homem. Imperdoável." Rikiga cerrou os punhos, as sobrancelhas arqueadas furiosamente. 
"Podes dizê-lo de novo," comentou Inukashi. "É quase tão corrupto como tu, velhote."
"Ei, vira-lata. E o quê que exatamente é corrupto em mim? Sou solteiro, é por isso que posso goz―er, passar um bom tempo com mulheres. Mas se eu casasse―" Rikiga olhou furtivamente para Karan, e respirou fundo.
"Amaria a mulher por tanto tempo quanto vivesse. Nem sequer iria olhar para outras mulheres. E ia parar de beber. Não é para me vangloriar ou coisa do género, mas julgo que daria um bom homem de família. Pois."
"Mentiroso," cuspiu Inukashi. "Tu a seres um marido decente é tão provável como o meu cão se tornar top chef.
Inukashi encarou Karan e Rikiga antes de dizer algo em retorno.
"Mas Mamã Karan, nem sequer consigo imaginar um palerma assim ser pai de Shion. As suas personalidades são demasiado diferentes."
"Pode-se dizer que sim. Mas ele era surpreendentemente talentoso com as mãos, e acho que Shion herdou isso dele. Na verdade, isto―" Karan mostrou delicadamente a parte de trás do cobertor de Shionn. Ele envergava uma camisa com um colarinho branco liso. O colarinho e bolsos do peito tinham sido bordados nas bainhas com fio azul. 
"Ele cozeu isto à mão. Assim como as roupas de bebé e a baba. Terminou na véspera de nos deixar, e deixou-os na mesa com uma carta a dizer que queria que Shion os vestisse no seu primeiro aniversário. Então quando fizeste um ano, Shion, coloquei-os em ti. Eram um pouco grandes na altura. Mas penso que servem na perfeição a este Shionn. "
Esta era realmente, verdadeiramente a primeira vez de Shion a ouvir tais detalhes sobre o seu pai vindos de Karan. Shion nunca tinha feito perguntas porque a sua mãe nunca parecera disposta a falar disso. Ele tinha vivido a sua vida sem pai simplesmente aceitando como as coisas eram.
O seu pai esteve perdido com mulheres e dinheiro, adorava beber, era um especialista em  geologia, um membro da equipa do Projeto de Restauração, era surpreendentemente habilidoso com as mãos, e deixou a família pouco após Shion ter nascido.
Shion deitou uma olhada ao berço. Fitou o bebé a dormir dentro dele, com o mesmo nome que ele. Tocou na camisa bordada.
Eram coisas que o seu pai tinha deixado para trás.
Shion olhou fugazmente para Karan de perfil.
Então o conhecimento de Karan com o âmago dos membros de No. 6 não se fizera através de Rou. E o seu pai, como um membro, colega, e proprietário dos meus ideais no seu coração, tinha passado a sua juventude a par com o major e os outros cientistas. 
"E o pai de Shion deixou a casa por causa... bem, por causa desses problemas com as mulheres?" Inukashi inclinou-se para a frente.
"Ei, não te intrometas nos assuntos pessoais dos outros," disse Rikiga. "Não tens muito tato nos ossos do teu corpo, tens?"
"Ha, nem sequer me fales de tato. Estás a morrer de curiosidade por ouvi-lo tu próprio, velho. Estás a esforçar-te tanto por impressionar. Heh, nem consigo parar de rir." Inukashi rangeu os dentes num esgar sorridente.
O seu comentário aparentemente passou a marca, pois Rikiga ficou vermelho e caiu no silêncio. Karan nem parecia ofendida nem surpreendida pela franqueza de Inukashi. Continuou calmamente.
"Talvez estejas certo. Essa pode ter sido uma razão indireta. Eu era jovem e queria que ele parasse de ser ridículo. Mas desde que ele descobriu que Shion estava a caminho, mudou ligeiramente, Toda a sua atenção se voltou ao bebé por nascer, e parou mesmo de beber ou de se envolver com mulheres, ainda que não tenha durado muito... voltou a beber pouco tempo depois. Mas eu sentia que se ele continuasse assim, talvez se tornasse num homem de família decente. Por dentro, eu estava orgulhosa. É por isso que eu sei que ele não deixou a família por causa das mulheres... ele teve outra razão..."
"Porque No. 6 estava a mudar."
Karan pestanejou várias vezes à afirmação breve de Shion.
"Podes dizê-lo com certeza?"
"Foi só um palpite vago."
 Enquanto No.6 tomou forma numa cidade-estado―um estado totalitário, autoritário―vários membros retiraram-se do Projeto de Restauração durante o processo. Alguns foram removidos intencionalmente, outros deixaram-no por vontade própria. Estritamente entre as possibilidades, talvez alguns tenham sido considerados um obstáculo e assassinados discretamente. Era mais provável.
"Ele sentia-se oprimido pelo facto de que No. 6 estava gradualmente―não, na verdade, bem depressa―a transmutar enquanto desenvolvia a estrutura da cidade. Ele sentia-se apreensivo, mas não fazia ideia do que fazer quanto a isso. Talvez estivesse com medo. Lembro-me de ouvir dizer vezes e vezes para si mesmo, 'Não é possível. Não pode estar a acontecer.' Então, um dia... ainda nem se tinha passado um mês desde o nascimento de Shion... ele disse-me, 'Vamos deixar No. 6. Ainda podemos escapar. Mas em breve, não será possível deixara cidade ileso.' A sua expressão era tão séria quando o disse. Devia ter desistido de No. 6 por essa altura. Provavelmente pensou, 'Não posso viver mais aqui. Um dia vou sufocar, e acabar por tirar a minha própria vida, ou ser assassinado se não o fizer.' Foi por isso que tentou convencer-me a escapar para algum lugar longe de No. 6, e começar uma nova vida numa terra estranha, apenas nós os três."
"Mas tu disseste que não, mãe."
"Sim." Karan deixou escapar o ar. "Eu disse que não. Eu disse-lhe claramente que não iria com ele. Não conseguia fazer-me acreditar no que ele estava a dizer."
Karan desviou os olhos e olhou para baixo como se o encarar de Shion fosse demasiado ofuscante para suportar.
"Quando lhe perguntei para onde iríamos assim que deixássemos No.6, ele disse que não sabia. Então simplesmente rompeu num riso animado e... disse que não seria assim tão mau vaguear livremente como o vento. Mas eu tinha um bebé que ainda nem tinha completado um mês. Além das seis cidades-estado, eu sabia que só havia barreiras e campos minúsculos deixados na terra. Não suportava pensar em forçar uma jornada tão árdua numa criança tão pequena. Deduzi que enquanto estivéssemos dentro de No. 6, não teríamos de ficar famintos ou ficar doentes. Não me conseguia convencer de que ele nos poderia proteger melhor que No. 6. Não pude confiar nele."
Ainda assim outro suspiro escapou dos lábios de Karan. 
Não sei se tomei a decisão certa nesse dia. De certeza não me arrependo de não ter ido com ele. Mas o facto é que nessa altura já me tinha tornado dependente de No. 6. Estava a tentar viver uma vida de dependência. Vivi anos e anos sem sequer me aperceber... Completamente ignorante do cheiro a podre de No. 6, quando ele foi o primeiro a detetá-lo. E isso―é realmente motivo de arrependimento."
"E não fazes ideia de onde o pai está agora?"
"Não, não faço. Nem sequer sei se esá vivo ou morto. Mas conhecendo-o, tenho a impressão de que está a viver livremente, fazendo o que lhe agrada."
O tom de voz de Karan decaiu ligeiramente.
"Shion, gostarias de conhecer o teu pai?"
"Bem... Só te conheci a ti, mãe, então não sinto realmente nenhum tipo de relação com ele. Não sinto realmente a sua falta. Mas estou curioso."
"Curioso?"
"Curioso sobre o porquê de teres decidido falar do pai tão de repente. Nunca falaste sobre ele antes."
Os lábios de Karan moveram-se, mas nenhuma palavra veio deles. Seguiu-se um breve momento de silêncio. Tão notório que a respiração adormecida de Shionn podia ser ouvida alto e bom som.
"K-Karan―"
Rikiga ergueu-se abruptamente.
"Hã, hum―enfim, c-continuas a ter algum problema a esquecer-te de, ha, do teu antigo marido? Quero dizer, hum, ainda estarás... há espera de que ele volte a cada, ou... é―é assim que te sentes no momento? Ou estás, hã, disponível para tentar outros... er, relacionamentos? Que, hum, se algo acontecesse, poderia resultar em..."
"Com que raio de linguagem é que estás a falar, velhote?" Inukashi intrometeu-se. "Acho que um cão recém-nascido faria de longe mais sentido que tu. Certo?" O cão às manchas que estivera a dormir aos pés de Inukashi abriu os olhos de repente. Deu um longo bocejo. Karan sorriu.
"Não estou à espera dele, Rikiga," disse ela. "Para mim, ele já é um homem do passado. É claro que eu espero que esteja vivo algures, mas―"
Uma felicidade inquestionável atravessou as feições de Rikiga. 
"Não podias ser mais óbvio que isso," murmurou Inukashi.
"Absolutamente certo," pronunciou Rikiga entusiasticamente. "Não podemos viver no passado para sempre. Se vamos viver em alguma coisa, devia ser no futuro. O amanhã é muito mais importante que o ontem."
"Concordo."
"C-certo?" Também achas que sim, não é? Então... hã, Karan, não concordarias que, hum... alguém com quem poderias viver no futuro é, hã, muito mais importante do que alguém com quem viveste no passado?"
"Sim, é claro. Foi por isso que te convidei para jantar esta tarde. Eu queria jantar contigo."
Uma exclamação escapou dos lábios de Rikiga soando a algo entre "oh" e "ah".
"K-Karan, a sério? T-tu pensaste em mim, e por isso―"
Inukashi puxou o casado de Rikiga.
"Velho, velho. Desculpa por estilhaçar os teus sonhos, mas eu fui convidado, também. Não foste o único. Não te esqueças disso."
Rikiga fez uma careta magoada e golpeou o ar como se a tentar afugentar moscas.
"Shoo! Shoo! Vai até à porta e leva esse mestiço sujo contigo. Tu provavelmente tencionas tomar vantagem dos cozinhados de Karan."
"De facto, eu recebi um convite adequado. Certo, Mamã Karan?"
"Sim, é claro. Tanto Inukashi como tu, Rikiga, são companheiros muito importantes para Shion. E são ambos grandes amigos meus. Por isso convidei ambos a vir. Não tenho muito, mas tenho imenso pão acabadinho de fazer. Também tenho compota caseira e estufado. Só um minuto, vou prepará-lo. Shion, dás-me uma ajuda?
"Claro."
Karan abriu a porta da cozinha e desapareceu além dela. O aroma do pão e do estufado flutuou até à sala. Os dois cheiros distintos estimulavam o nariz. Inukashi farejou o ar avidamente.
"Eu também vou ajudar! Receber uma refeição de graça vai contra a minha moral." Riu-se. "Ouviram isso? Pão acabado de fazer e estufado. Só a maneira como isso soa é de babar, mas depois há o cheiro, e... oh, é perfeito. O meu estômago está a roncar como se não houvesse amanhã. Não estás com fome também, velh―hum? Velhote, o quê que se passa? Os teus olhos não estão focados. Porquê que estás na lua?"
"...Companheiros... amigos..."
"Hu?"
"A Karan disse que eu era um companheiro. Um amigo. Para a Karan, eu sou apenas um membro do grupo, só um dos seus amigos..."
Shion e Inukashi olharam um para o outro. Inukashi inclinou a cabeça. 
"Hum. Bem, 'vamos ser bons amigos' é uma típica frase de rejeição. Cães seriam muito mais diretos e diriam que odeiam o teu pêlo ou que tens dentes grosseiros, mas os humanos preferem tomar o caminho mais longo. Ah, mas realmente, velho, planeavas mesmo fazer a proposta à Mamã Karan?"
"...Eu estava sério," disse Rikiga melancolicamente. "O trabalho está a correr-me bem, e tenho dinheiro suficiente para gastar. Estava confiante de que faria Karan feliz."
Seguindo-se à destruição de No. 6, as negociações começaram a estender-se para fora da muralha. Rikiga tomou vantagem do caos e comprou-as a preços baixos.
Acumulou peças de arte e trabalhos manuais, eletrónica, pinturas, joalharia, mobiliário, aparelhos médicos, carros, roupas, utensílios de escritório, e mesmo brinquedos; quando as coisas começaram a assentar, vendeu-os a preços altos e obteve um excelente lucro. Agora ele dirigia e geria uma companhia de publicações e impressão, encarregado da publicação de uma revista informativa semanal e de um jornal diário.
"Bem, tu és uma estrela em ascensão do empreendedorismo, Rikiga-san. Os rumores dizem que és o jogador mais poderoso."
"Pensas honestamente isso, Shion?"
"Claro que sim. Tu e Inukashi não precisam de elogios falsos da minha parte, precisam?" Shion tirou o casaco e arregaçou as mangas.
"Continuo a dizer-te para parares de me associar ao meio-cão," disse Rikiga cansado. "Mas chega disso. Então, Shion, tu conheces-me, não é? Achas que sou adequado para casar com Karan?"
"Hum? Oh, eu―eu não queria dizer... bem, hum, não penso que a minha mãe tencione casar de novo. Contou-me ainda no outro dia sobre o quanto estava satisfeita com a sua vida e sobre como gostaria de continuar a ser pasteleira por tanto tempo quanto puder."
Era verdade: A vida de Karan não tinha mudado muito, pelo menos à superfície. Ela dirigia a sua pequena pastelaria encolhida a um canto da Cidade Perdida, conversando com os clientes e amassando a massa para as primeiras doses durante as primeiras horas da manhã.
Era essa a sua rotina habitual, que repetia todos os dias. Mesmo numa intensa turbulência, Karan continuou a manter o forno quente, fazer pão, e a expô-lo em frente à loja. As pessoas lamentavam-se com as bocas cheias de pãezinhos e muffins.
"O mundo desintegrou-se sob os nossos pés, mas isto continua com o mesmo sabor. Há coisas no nosso mundo que não mudaram."
Essas eram palavras de um homem idoso, um cliente regular. Tinha murmurado essas palavras repetidamente, as bochechas ensopadas em lágrimas. Shion deparara-se com o mesmo tipo de murmúrio várias vezes. 
Algo que nunca mudará―para as pessoas, esse sentimento de certeza significava esperança e era um motivo para continuar a viver.
"A tua mãe é uma mulher incrível," tinha dito Nezumi, com um raro tom de reverência na voz.
Foi no dia em que ele acordara.
No dia em que tudo terminara―não, começara―Shion arrastou o seu corpo exausto e batido de regresso a casa de Karan. Depois de um abraço de reunião algo breve, colapsou na cama com Nezumi e dormiu como um palerma. O seu sono foi profundo o suficiente para cortar todos os seus sentidos, e quando acordou, já ia a metade do dia seguinte. Era a altura do dia em que o sol brilhava diretamente de cima, emitindo um brilho vermelho desmaiado.
Não havia sinais de Nezumi ao seu lado. Havia um cobertor dobrado cuidadosamente e colocado aos pés da cama. Shion pousou um punho no topo do cobertor dobrado. Um som estrangulado escapou subconscientemente da sua garganta. 
Nezumi, foste-te? Tal como fizeste há quatro anos atrás?
Há quatro anos atrás, na manhã após a tempestade, Nezumi tinha desaparecido do lado de Shion. Desaparecera de repente, como se tudo na noite anterior tivesse sido uma ilusão.
Nessa altura, eles tinham acabado de se conhecer. Mal sabiam algo um sobre o outro―nem uma só coisa sobre o passado que os empurrava, o futuro que os contemplava, ou as emoções que guardavam na alma. 
Mas agora era diferente.
Ainda assim, continuava a haver coisas que não podiam alcançar, coisas que não podiam compreender um sobre o outro. Havia um abismo entre ele e Nezumi que ele nunca poderia preencher, independentemente do quanto lutasse por isso.
Eu sei. Eu sei. Eu sei. Nós sabíamos, mas mesmo assim vivemos juntos. Não no passado, não no futuro, mas no presente. Vivemos juntos no presente. 
Mas agora vais partir de novo sem uma palavra?
Os pensamentos de Shion chegaram a esse ponto antes de ele negar com a cabeça veementemente.
Claro que não.
Passamos imenso tempo juntos, e ultrapassamos o inferno juntos. Ele não iria sumir sem uma palavra. O nosso relacionamento não é assim. E além disso, seria arriscado para ele deslocar-se por aí com um ferimento tão sério. Não consigo imaginar Nezumi a ser tão descuidado.
Detetou uma baforada do aroma a café e pão. Era o cheiro do despertar.
Shion abriu a porta da sala de estar.
"Oh, o príncipe finalmente acordou?" Nezumi estava a sorrir com uma chávena de café na mão. "Não posso criticar muito, porém. Acordei há pouco tempo."
Shion engoliu o seu suspirou de alívio, e com um grande esforço fingiu um comportamento calmo.
"Nezumi. Como te sentes?"
"Não poderia estar melhor. Ou, pelo menos, desejava poder dizê-lo. Mas seria mentira. E tu?"
"Não poderia estar melhor."
Nezumi fazia a chávena girar à volta da mão.
"Confiante agora que estás no teu lar, hã? Embora seja ótimo teres energia suficiente para atuar. Mas posso sugerir que tomes um banho e que borrifes a cara antes de tentares fazer-te passar por forte? Julgo que mesmo o Rei Lear perdido na selvajaria tinha um aspeto mais íntegro do que tu."
Shion olhou de relance o espelho pendurado na parede. O seu rosto e cabelo estavam cobertos com vestígios de sangue, sujidade, e suor seco. A sua camisa estava rasgada em vários lugares, e a sua manga direita parecia prestes a cair.
Ele tem razão. Não me parece que o Rei Lear na sua loucura teria uma aparência tão má. 
Sentiu uma estranha urgência de rir.
"Então, sua Majestade, irá tomar um banho primeiro? Ou devo preparar uma chávena do melhor café para si?"
"Seria uma honra ser servido com café feito por ti."
"A tua mãe ofereceu-me algum pão delicioso―o melhor, devo dizer―e foi tão bom que parecia que a minha língua ia derreter. Acho que oferecer-te café é uma pequena compensação comparado com isso."
"Oh―mãe..."
"A tua mãe está atabalhoada numa correria a trabalhar desde manhã." Nezumi inclinou o queixo. Shion podia ouvir o zumbido abafado vindo do outro lado das paredes finas.
"Hum? Ela abriu a loja?" 
"Parece que sim. Ela disse que a única coisa que é capaz de fazer é pão, então vai continuar a fazer o que pode. Mesmo nesta confusão, o forno continua ligado e a pastelaria a trabalhar. Ela disse que à tarde fará alguns cravats para mim."
"Estou a ver... parece-se com algo que ela faria."
Nezumi pousou a chávena, e os olhos dirigiram-se em direção à parede branca. Já não havia nenhum sorriso pousado nos seus lábios. Era como se o seu olhar visse além da parede, focando em Karan em alvoroço do outro lado. Escuridão espreitava no fundo do seu olhar. 
"A tua mãe é uma mulher incrível," afirmara Nezumi. A sua voz era tão baixa que era quase um sussurro, mas havia certamente uma nota de reverência nela. "É uma Mãe Poderosa. Não sabia que havia alguém assim dentro de No. 6, mas ela é-o―e viveu aqui como cidadã."
"...É mesmo."
Uma pessoa nunca poderia estar completamente tingida de uma só cor, não obstante as circunstâncias. Pode ser tingida temporariamente, mas iria um dia adquirir a sua própria cor, e iria sempre esforçar-se por viver fiel a si própria.
Na verdade, essa era a própria esperança.
Quanto poderia alguém confiar nos dias que se estendiam atrás de si, nas pessoas da sua vida, na esperança? Eventualmente, esta questão posaria para Shion. Ele sabia que Nezumi tomaria a mesma designação.
Nezumi, poderemos alguma vez acreditar completamente nas pessoas? Não detestar, não condescender de cima, não abusar, mas acreditar?
Poderemos fazê-lo?
O odor do café preenchia o ar.
"Mas primeiro, precisas de um esplêndido pequeno-alomoço reforçado com o melhor dos pães e o melhor dos cafés. Pelo menos reserva o dia de hoje para descansar e não pensar em nada. O encorajador modo de viver da tua mãe é demasiado para nós, os jovens, lidarmos ainda, acho."
"És bem modesto."
"Estou em território desconhecido. Vou ter cuidado com o que digo," disse Nezumi suavemente. "E para dizer a verdade, estou um pouco cansado. Não tenho a menor objeção a dormir, comer ótimo pão, e voltar a dormir de novo. É como umas férias agradáveis."
"E vais ter direito a comer cravats à tarde."
"Sim, e isso." Nezumi estalou os dedos. "Nunca tive o gosto de contemplar pastéis em forma de laço. E feitos pelas mãos da tua mãe. Devem ser deliciosos."
"Assim que tiveres, vais estar ao seu mercê. Eles virão para te caçar todas as noites os teus sonhos."
"Imagino que foi como Hansel e Gretel se sentiram quando encontraram a casinha de chocolate. É uma dessas coisas onde o prazer e os sarilhos lutam braço a braço um contra o outro."
"Provérbio de alguém?"
"Só me ocorreu agora. E é melhor que te lembres dele: vai iluminar o caminho do teu destino."
Uma chávena de café estava pousada à sua frente.
"Bebe. Fi-lo pouco forte com montes de leite, tal como sua Majestade gosta."
"O quê? Nunca tomei café contigo antes. Como é que sabias como é que eu gostava dele?"
"Apenas sabia. Já te disse antes―és irremediavelmente fácil de ler, e irremediavelmente difícil de compreender."
"Posso dizer o mesmo de ti."
"Mas não sou tão difícil como tu."
"Olha quem fala. Devias ser a última pessoa a poder chamar-me difícil."
"Como assim eu sou difícil?"
"Demoraria até ser de manhã a listar tudo."
"Hum," Nezumi bufou. "Irei entreter-te com a minha presença até amanhã de manhã, então, vamos lá uvir todos os detalhes."
"Vês, era disso que eu estava a falar." Shion sorveu o seu café. A sua fragrância, sabor amargo, e brandura propagou-se dentro da boca. Os rolinhos na mesa também eram deliciosos. Tal como Nezumi dissera, eram tão bons que parecia que a sua língua ia derreter.
O sabor infiltrou-se em cada canto do seu corpo e alma. Era inquestionavelmente o sabor dos preparados da sua mãe.
"Num minuto és tão teimoso e fácil de enfurecer como uma criança, e no seguinte tens bom senso e não te apegas a o que quer que seja. Mudas constantemente de ideias, e mudas de humor de um minuto para o outro. Não consigo ver como é que alguém pode ser mais difícil que tu."
"Hã-hum, estou a ver. Não vais esconder nada, pois não? Bem, deixa-me dizer a minha parte, Shion"
"Vai em frente. Não tens nada contra mim."
Nezumi escarneceu. "Só pessoas indecentes insistem no quão decentes são."
"Então queres dizer que não te consideras decente?" retorquiu Shion.
"Erm, bem... Não é que eu não seja uma pessoa decente, porque sou sempre... Raios, estás a ficar mais rápido a ripostar." Nezumi contorceu a boca e estreitou os olhos.
Shion quase se riu da careta hilária de Nezumi.
Tudo parecia belo―aquela conversa casual, a atmosfera gentil, mesmo os raios do sol poente através da janela.
Era um momento precioso que existira entre a tempestade que tinha passado e a tempestade que Shion estava prestes a enfrentar. Era também uma memória afetuosa que Nezumi deixara para trás com ele.
Nezumi partiu, e Shion ficou. Os seus destinos entrelaçados e sobrepostos separaram-se, e agora flutuavam à parte. 
Quando é que intersetariam de novo?
"Ei, Shion." Rikiga aproximou a face. "Quero que me dês uma mão."
"Dar-te uma mão?"
"Eu queria contar... bem, dar a entender a Karan―discretamente, se não se importares―como sou acertado como um candidato para casar com ela."
"O quê? Mas, bem... Não tenho a certeza de que possa―"
"Estou a falar a sério. Quero propôr-me a casar com ela porque estou confiante de que a posso fazer feliz. É claro, se Karan quiser continuar a gerir a pastelaria, ela poderá fazê-lo por tanto tempo quanto desejar. Já sei!" exclamou ele, "Podíamos renovar completamente o lugar. Tornar a loja maior, colocar uma grande janela à frente. Deixá-la deslumbrante. Também podíamos consertar os quartos, e acrescentar mais divisões."
"Não acho que seja o que a minha mãe quereria. Ela parece bastante satisfeita com o que já temos."
Rikiga afundou a cabeça nas mãos.
"Oh, Karan. Que mulher tão virtuosa, tão modesta no que deseja. Ela é a encarnação de uma deusa."
"Não sei. Acho que ela é um bocado gorda para deusa," intrometeu-se Inukashi. "Mas a Mamã Karan é bonita, e demasiado boa para ti, velhote. E para tua informação, acho que o problema com as mulheres com que te envolves é que elas querem demasiado. Quando elas olham para alguém, vêm uma moeda de ouro no lugar onde o rosto deveria estar. Por outro lado, velho, a Mamã Karan só te vê como amigo. As pontas dos cabelos são candidatos mais prováveis a casamento na sua cabeça do que tu. Ah, apenas desiste."
"Não acho que um idiota como tu possa intromete-se em assuntos de adultos."
"Boa, boa. O senhor Adulto pode continuar a lutar sem esperança pelos seus assuntos de adulto. Shion, vamos ajudar a Mamã. Estou a morrer de vontade de jantar.
"Claro."
Podiam ouvir Rikiga deixar escapar um suspiro inquieto atrás deles.
O jantar foi agradável. Todos comeram, falaram, e riram imenso.
Foi divertido―muito divertido.
Se Nezumi estivesse aqui―o seu coração vacilou com incerteza. Se Nezumi estivesse ali, ele iria sentar-se ao lado de Shion, elogiar os cozinhados de Karan, e zombar presunçosamente enquanto olhava para Inukashi e Rikiga a discutir. Iria empunhar o seu garfo e colher com uma graciosidade elegante, e faria Karan feliz ao terminar tudo o que tinha no prato. 
Nezumi, onde estás? O que estás a fazer neste momento?
Já faz um ano desde que não te vejo.
Três horas depois, os seus companheiros deixaram a casa e imergiram na noite. Inukashi partiu animada, a sua mochila a abarrotar de pão. Rikiga parecia completamente deprimido. 
"Mãe," chamou Shion enquanto ele limpava. Karan, que estava a medir farinha, voltou apenas a cabeça para olhar para Shion. 
"O que é?"
"Porquê que convidaste Inukashi e Rikiga-san hoje?"
"Hum? Bem... Não penso que tenha tido realmente um motivo. Pensei que seria bom ter mais pessoas para jantar desta vez. Tens estado tão ocupado que nem tens tido tido tempo para te sentares e apreciares uma boa refeição."
"Então fizeste-o por estares preocupada comigo?"
Karan voltou o corpo todo de frente para o seu filho desta vez, e abanou a cabeça suavemente.
"Não é isso. É só―Shion, notaste? Já não sorris ou ris tanto."
"Hã?"
"Já faz algum tempo desde que de riste como hoje."
Shion tocou nas próprias bochechas. A sua pele parecia dura e tensa sob a ponta dos dedos. Karan encarava firmemente os dedos de Shion.
"O teu trabalho no Comité de Reestruturação deve ser difícil."
"Sim. Mas, quero dizer, nós estamos a criar uma organização inteiramente nova com uma nova porção de funções. Temos pessoas de todo o tipo de cargos num só lugar. Não é como se eu não estivesse preparado para lidar com as dificuldades."
"As coisas não estão a ir bem com Yoming e o seu grupo?" Karan ergueu o queixo. O seu tom e olhar tornaram-se mais duros, como se estivesse a desafiar alguém. "Imagino que vocês dois devam... pensar de forma muito diferente. Shion, Yoming e os outros estão a fazer-te passar um mau bocado?"
Shion não tinha resposta.
"Eu sabia," disse Karan. "Tive um mau pressentimento quando descobri que Yoming foi escolhido para ser um membro do Comité de Reestruturação."
"Conheces bem Toming-san, mãe?"
Uma sombra refulgiu através dos olhos de Karan.
"Julguei que o conhecia. Ele era tio de Lili, e afinal de contas, costumava vir frequentemente à pastelaria. Ele disse que No. 6 tinha assassinado a sua esposa e filho. Ensinou-se sobre o que No.6 verdadeiramente era, quando eu ainda não fazia ideia. Ajudou-me. Ele é muito inteligente, não é?"
"Sim. Ele é esperto. Organizou a resistência. Foi ele quem reuniu todas as pessoas que se opunham a No. 6 e fez delas uma organização. As suas ações foram uma das coisas que disparou para a queda de No. 6. É apenas normal que ele seja escolhido como um membro do Comité."
"Normal? É mesmo? Shion, tu realmente achar que Yoming é uma pessoa adequado para o Comité de Reestruturação. Eu... Eu só não me consigo convencer a mim mesma de que que o é."
"Mãe..."
As janelas chocalharam. Parecia que o vento lá fora estava a pegar. Iria varrer as nuvens para longe e trazer fim à chuva.
Amanhã, provavelmente o céu azul abrir-se-ia sobre eles.
"Ele odiava No. 6 com paixão," continuou Karan. "E com razão, também. Levou a sua família mais preciosa para longe dele. Não estava cego como o resto de nós. Ele via No. 6 como era precisamente devido ao seu ódio por ela. E apesar de viver dentro da cidade."
Karan estendeu a mão para o saco de farinha ao seu lado.
"O ódio era a sua energia, e foi efetivo para destruir No. 6. Porém... porém essa energia não vai criar nada de novo. É o que eu penso, Shion."
Havia uma nota de desamparo na voz da sua mãe que fez o seu coração doer.
Era preciso uma pessoa livrar-se do ódio ou ultrapassá-lo com o intuito de criar algo novo, A aversão nunca se tornaria uma força para o renascimento.
"Pouco ante de o caos tomar No. 6 por causa daquela doença estranha... quando começamos a ver sinais claros do começo da destruição... ele veio cá, e tivemos uma longa conversa. E ele disse-me, 'Perdi a confiança em ti.'"
"O Yoming-san disse que perdeu a confiança em ti, mãe?"
"Sim. Shion, há muitas coisas que eu não sei ou não posso compreender. Nunca quis saber ou compreender. Certamente é algo bem vergonhoso. Se nós os adultos tivéssemos sido minimamente mais inteligentes, talvez até tivéssemos conseguido salvar a Safu, também.
"Mãe, vamos regressar ao assunto do Yoming-san," disse Shion num tom firme como se para cortar as palavras melancólicas da sua mãe. Os seus pensamentos e sentimentos por Safu eram como um pântano sem fundo. Independentemente do quanto se arrependesse ou desculpasse, nunca teria fim. Não importava quantas dezenas de milhares de palavras ele empilhasse, não importava quanto ele orasse, nunca seria perdoado.
Ou pelo menos, nunca iria esquecer.
Ele iria recordar Safu e o desejo que ela depositara nele até à hora do seu último suspiro.
Karan pestanejou, e assentiu de leve.
"Sim, ele perdeu a confiança em mim porque eu não concordei com ele de todo o coração. Ele estava a tentar tornar-se um herói, um herói que ultrapassaria um estado ditador. Não sei, isso não foi por vingança, ou fúria de ter sido oprimido todo este tempo... Sentia que ele estava a ser dominado por uma espécie de―desejo?―de se tornar um herói cujo nome ficaria marcado na história. Yoming disse que casualidade eram inevitáveis num mundo em mudança. Ele ignorava as pessoas a sangrar e morrer e dizer que não podia fazer nada por elas. Para ele, se um milhar de pessoas morresse para salvar dez mil, as suas vidas não teriam sido perdidas em vão―mas não há algo de errado em encerrar as coisas assim? Há algo de errado em converter pessoas em números. E considero que seja errado para um herói elevar-se num pedestal construído sobre o sacrifício humano."
"...Sim."
"Shion, podes lutar contra Yoming?"
Lutar? Yoming-san é alguém contra quem tenho de lutar? É um inimigo?
O grupo de Yoming continuava a declarar que o temporariamente-estabelecido Comité de Reestruturação devia ser dissolvido e uma nova organização inteira criada no seu lugar. Estava claro que se eles obtivessem o que queriam, o cerne das posições do Comité seria dominado por membros do grupo de Yoming. Seria uma distância considerável do princípio do Comité, fundado acima da ideia de que o Comité era um lugar onde membros com diferentes passados e afiliações podiam trocar opiniões livremente. Mas agora, Yoming e o seu grupo tinham parado de ouvir de todo as objeções e opiniões do grupo de Shion, a minoria.
Algo tem de ser feito. Eu tenho de fazer algo.
No. 6 já era um exemplo comprovado do que resultava quando a justiça cabia às mãos de poucos e todos os outros eram banidos. Os danos permaneciam em bruto, continuavam a latejar; porquê que o grupo de Yoming estava a tentar traçar o mesmo caminho?
Tenho de fazer alguma coisa
"Shion, estás tão magro." O olhar e tom de Karan tornaram-se maternais. Era um relance de amor de mãe, o amor idiota, feroz, puro, e egoísta que as deixava preocupadas com o bem estar das suas crianças e as fazia somente desejar pela sua felicidade. 
"Devias sair do Comité de Reestruturação se é um fardo tão grande para ti. Há tantas outras maneiras de viver. Tu próprio disseste uma vez que gostavas de ter um emprego que envolvesse crianças. Porquê que não procuras por um?"
"Não..." Shion abanou lentamente a cabeça. "Ainda tenho coisas para fazer."
"Mas..."
"Mão, ele disse-me para não fugir. Tenho de ficar aqui porque tenho um trabalho a fazer. Ele disse que não posso voltar-lhe costas agora. Não quero ir contra essas palavras."
Karan não perguntou quem "ele" era. Em vez disso, ela fitou o seu filho em silêncio.
O vento tornou-se ainda mais insistente. As janelas abanavam sem descanso.
Karan deixou sair um suspiro vencido.
"Suponho que a vida seria um menor incómodo se fosses excêntrico como o teu pai."
"Oh," disse Shion apercebendo-se. "Foi por isso que decidiste de repente contar-me sobre o pai."
Era uma forma de viver: não colocar nada acima de si próprio, arremessar para longe qualquer carga pesada, voltar as costas a tudo.
O teu pai escolheu viver assim.
Uma mãe, vendo o seu filho lutar contra a realidade, contou-lhe a verdade sobre o seu pai.
Mas eu não posso. Não posso viver como o pai escolheu.
'Shion... não fujas. '
As palavras de Nezumi suportam-me. O Nezumi nunca fugiu. Nunca desviou a cara do destino, ou da realidade. E eu estive lá ao lado dele.
A Safu passou o seu legado para mim.
Não posso fugir.
Não posso traí-los.
Tenho de lutar―não por mais ninguém, mas para eu mesmo permanecer quem sou.
Ele agachou-se e beijou a mãe na bochecha.
"Vou dormir. Boa noite, mãe."
Os dedos de Karan gentilmente afagaram o cabelo branco de Shion.
"Boa noite."
Os seus lábios contorceram-se ligeiramente, como se se estivesse a forçar a sorrir.
Um rato magro estava encaracolado na cama.
"Tsukiyo."
Ele levantou a cabeça à voz, e chiou suavemente. Shion ofereceu algumas migalhas de pão e queijo a Tsukiyo, colocando-os mesmo em frente ao seu nariz. Tsukiyo abanou os bigodes duas, três vezes, mas não tocou em nada.
Quando Shion acariciou as costas de Tsukiyo com a ponta do dedo, ele fechou os olhos sonhadoramente. Era uma criatura pequena, mas detentora de sabedoria e de inteligência. Era provavelmente um descendente dos ratos selvagem que viveram nas profundezas da floresta juntamente com o Povo Mao.
Shion tinha simplesmente assumido que por não ser um rato normal, teria o mesmo tempo de vida que um humano. Mas ultimamente, tinha visto Tsukiyo a envelhecer e começar a enfraquecer.
O tempo de vida médio de um rato ficava algures entre um ano e meio e dois anos. Mesmo um hamster de estimação viveria três anos no máximo.
Tsukiyo aproximava-se lentamente do seu fim.
"Tsukiyo, aguenta. Tens de viver para veres o teu mestre regressar a casa." Shion afagou-o gentilmente com a parte plana do dedo.
Cheep-cheep.
Tsukiyo chiou contente, e fechou os olhos.
* * *
“O que é isto?” Vincos profundos formaram-se entre as sobrancelhas de Yoming.
Encontravam-se no primeiro andar da sede do Comité de Reestruturação, a antiga prefeitura que costumava ser chamada de Moondrop.
Shion e Yoming estavam sentados frente a frente numa mesa numa pequena sala de reuniões. Shion tinha chamado Yoming. Um dispositivo eletrónico estava deitado na mesa. Yoming apenas olhara para baixo de relance para o ecrã e franziu o cenho.
"Isto é a prova do teu desvio de fundos da antiga No. 6."
"O quê? De que estás a falar?"
"Sempre estiveste, e continua a estar, em posição de gerir enormes recursos da antiga No. 6. Tomaste vantagem do teu post para reclamar grande parte desse dinheiro como teu. Refiro-me a fraude."
"Absurdo," escarneceu Yoming. "Estou ocupado. Não tenho tempo para alinhar na partira de um rapazinho."
"Partida? Será?" Shion pressionou-o. "Os recursos de No. 6 foram deixados expostos por algum tempo porque a gerência não estava a funcionar. Nessa altura, um terço dos fundos desapareceu. Especialmente ouro―cerca de sessenta por cento foi perdido."
"E estás a insinuar que é culpa minha?"
"Sim."
"Não te atrevas. Sim, posso estar encarregado de gerir os fundos. Mas como seria de esperar que eu mantivesse a guarda sobre o ouro acima de tudo durante o caos? Não devo ser responsabilizado por isso."
"O ouro não foi simplesmente roubado. Foi contrabandeado, e isso foi premeditado. Se não foi planeado previamente, como explicas o facto de quarenta por cento ter restado? Ladrões certamente levariam o ouro todo. Não apenas isso, o ouro  estava na parte mais funda do cofre subterrâneo. Independentemente de quão má fosse a confusão, teria sido excessivamente difícil exportar várias preciosas toneladas de ouro sem ser notado. Nem mesmo bandos de ladrões profissionais teriam sido capazes. De facto, é completamente impossível. Yoming-san, deixa-me dizê-lo de novo. O ouro não foi roubado. Foi desviado, e isso foi premeditado."
"E estás a dizer que quem o desviou fui eu?"
"Não me ocorre mais ninguém."
Yoming inclinou o queixo para trás e sorriu maliciosamente. "Estás a chamar-me ladrão? Que grande acusação. Se não retirares depressa o que disseste, irei processar-te por difamação."
"Precisaste de uma grande quantidade de capital para expandir e manter o poder do teu grupo. Por isso é que te voltaste para os fundos de No. 6. Era o meio mais fácil e rápido."
"Estás realmente a tentar acusar-me?"
"Estes dados―" Shion apontou com o queixo para a mesa. "São uma cópia da tua aplicação e das autorizações submetidas em nome do Comité para alugar um carregador. Ambos têm a tua assinatura escrita à mão. Este carregador foi usado numa jornada até No. 4 e regressou. E isto―"
Shion tocou no ecrã com a mão, e novos dados apareceram. Yoming encarou intensamente a série de números sem pestanejar. 
"Isto é a lista dos teus bens pessoais providenciados pelo banco de No. 4. Relativamente ampla, não é? Adequada a um rei. Penso que é seguro assumir que estes bens foram todos convertidos do ouro. Os números somam-se. E aqui temos mais."
Moveu os dedos.
"Estes dados são de benefícios especiais que entregaste ao teu grupo de membros. Também é bastante. Nem mesmo os executivos da antiga No. 6 recebiam tanto. 
"... Nós os membros colocamos as nossas vidas em risco para lutar com No. 6," disse Yoming calmamente. "Somos perfeitamente merecedores de tal quantia."
"Isso cabe ao Comité decidir, não a ti fazer os teus próprios julgamentos. Muitas outras pessoas lutaram com as suas vidas em jogo. Muitas não passaram disso, aliás, Yoming-san."
Shion ergueu-se e começou a enrolar o papel eletrónico.
"Desviaste fundos públicos para entregar compensações sobre os teus próprios julgamentos e apropriaste-te do dinheiro para teu próprio uso. É inequivocamente traição. Traíste cada um dos cidadãos.
A porta foi aberta numa explosão. Dois homens entraram. Eles eram segundo e terceiro comandante no grupo de Yoming. Ambos tinham trinta e poucos anos e cabelo castanho escuro.
"Fizeste e foste-te, Yoming."
"Como é que pudeste perpetrar um mal desses nas nossas costas? Devias ter vergonha!"
"Nas vossas costas?" retorquiu Yoming. "Isso é ridículo, todos vocês estavam cientes de que..." Yoming reteve a respiração. Mordeu o lábio. A cor rapidamente se esvaiu do seu rosto.
"Shion, tu encurralaste-me."
Shion manteve um olhar estável sob o rosto pálido do homem, e não proferiu nada. Os olhos de Shion não o questionavam.
"...Eu sabia que eras perigoso," disse Yoming suavemente. "Subestimei-te por seres jovem. Foi esse o meu erro."
"Todos cometemos erros na vida, Yoming-san. Mas o seu acabou de lhe custar a sua vida." Ele estalou os dedos. A porta deslizou abrindo para a sala seguinte, e mais dois homens entraram. Eram de uma estatura tão grande que era preciso içar o pescoço para ver os seus rostos.
"O quê que supões que podes fazer comigo?" inquiriu Yoming desafiadoramente. "Enforcar-me em público?"
"Claro que não. Foste um membro de destaque durante a queda de No. 6. Não seria tão imperdoável. Na base do julgamento do Comité, iremos garantir-te um bónus pelos teus feitos, e uma pensão pública até morreres. Mas iremos confiscar todos os teus bens pessoais em No. 4. Estás, é claro, demitido de ser um membro do Comité de Reestruturação, e ser-te-ão retiradas todas as tuas qualificações. Haverá limitações implementadas nas tuas atividades e local de residência. Estás proibido de sair da tua residência designada, independentemente de qual possa ser a razão."
"Se eu não obedecer―"
"Nesse caso, não posso garantir a tua segurança."
"He, então é basicamente uma prisão exteriormente inofensiva. Uma versão moderna de exílio. Se eu for atingido na cabeça por agir sem permissão, ninguém te culpará. Ninguém será capaz de te culpar."
Os homens gigantescos moveram-se até ficarem de pé atrás de Yoming. Yoming caminhou a passos largos em direção à porta, parcialmente empurrando-os para fora do caminho. Então parou, e voltou-se.
"Shion, tens potencial para ser um líder como mais nenhum. Eu, ou mesmo o major, não nos podemos comparar. Um dia, tentarás dominar tudo, tentarás ter tudo sob o teu domínio. Irás reinar como um frio, implacável, e excessivamente bom ditador."
Um riso―uma risada seca soou e ecoou dentro da sala.
"E quando isso acontecer, pergunto-me como Karan olhará para ti? Com que tipo de olhar contemplará o seu filho, o filho que se converteu num monstro?"
Um dos homens colocou a mão no ombro de Yoming. Yoming afastou-a, e passou a entrada. A porta fechou.
"Não podia ir sem uma última acusação amarga."
"Ele não sabe quando parar."
Número 2 e 3 olharam um para o outro e encolheram os ombros comicamente. Em simultâneo dirigiram-se a Shion. 
"Shion, nós também fomos enganados. Nunca imaginamos sequer que ele desviava fundos públicos."
"Realmente? Estes dados listam os vossos nomes claramente como recetores de largos benefícios."
Shion sorriu serenamente aos dois homens, que tinham começado a ficar pálidos.
"Mas apaguei essa parte. Sem a vossa cooperação, não teríamos sido capazes de trazer o crime de Yoming à luz. Estou agradecido."
"Então nós..."
"Eu mesmo não tenho nada de que vos repreender." Shion estendeu a sua mão a ambos. "Por favor continuem a dar duro por No. 6. Devemos todos unir forças para ultrapassar esta dificuldade. Precisamos da vossa ajuda. Espero que estejam dispostos."
A cor voltou às bochechas dos dois homens. Eles apertaram a mão de Shion e assentiram entusiasticamente.
"Vejo-vos esta tarde, então," disse Shion. "Planeio reportar este incidente em detalhe desde o topo. Conto com a vossa assistência."
"Sim, iremos testemunhar devidamente. Também mostraremos o nosso respeito perante a sua resposta rápida e a sua impressionante capacidade de julgamento não importa o quê. É realmente um líder incrível para a próxima geração."
"É uma honra. Mas é um pouco embaraçoso receber um elogio tão eloquente."
"Não tem de ser modesto. Ninguém é capaz de preparar dados tão detalhados para provar um crime. Mesmo Yoming não teve nada a argumentar."
"Ele estava a subestimar-nos, julgo. Ele julgou que assim que se tornasse líder do Comité, seria capaz de fazer esquecer e reescrever os dados conforme as suas preferências. Por isso lutou para chegar ao topo tão depressa quando podia. O seu desespero permitiu que erros descuidados acontecessem a torto e a direito."
"Ah, agora estou a ver. Incrível."
"De facto, é," concordou o outro homem. "Impressionante. Agora, acho que iremos sair daqui e regressar ao nosso trabalho. Vê-mo-lo mais tarde, então?"
"Sim."
Os dois homens alinharam-se e saíram. Shion foi deixado sozinho.
"Dados detalhados, hã." Ele desenrolou o dispositivo e passou a mão nele. A imagem no ecrã desintegrou-se, e os números e palavras desapareceram.
Não havia dados que evidenciassem o crime. Provavelmente existiam―mas Shion não tinha nem meios nem tempo para os obter. Se não existiam, simplesmente tinha de criá-los. Criar os dados que deixariam Yoming sem escolha a não ser admitir os seus crimes. Não foi fácil, mas também não foi uma tarefa assim tão árdua. 
Correra bem. Tinha sido capaz de remover um obstáculo do seu campo de visão. Ele iria remover, desviar, destruir os seus obstáculos―e depois o quê?
Shion olhou para lá da janela.
O quê que eu estou a fazer?
Criar um estado neste mundo que é diferente de No. 6―um que é para humanos.
Fazer um país onde ninguém mata, e onde ninguém é morto.
Isso é sequer possível?
O riso de escárnio de Yoming explodiu nos seus ouvidos.
O quê que me vai acontecer?
Tap, tap. Escutou o som do vento. Não, não do vento―estava alguém a bater à janela?
Nezumi!
Shion correu para a janela e abriu-a. O vento despenteou as suas repas. Não havia ninguém lá. Tinha sido apenas uma ventania passageira. Shion caiu no chão e agachou-se, cobrindo o rosto com as mãos.
Nezumi... porquê que não voltas para casa? Porquê que não estás ao meu lado? Só quero olhar nos teus olhos e ver que sou eu, que posso continuar a ser quem sou. São a minha única âncora.
Nezumi, eu quero ver-te.
Não havia lágrimas. Um rosnar escapou através da fenda entre os seus lábios. era um rosnar animalesco, numa voz que dificilmente se podia considerar a sua própria.
Um alarme ativou. Continuou a soar. Shion levantou-se, e carregou no botão do interlocutor.
A voz calma de um homem jovem veio através dele.
"Membro Shion, gostaria de ouvir as suas ordens sobre o projeto para as novas políticas de No. 6 que serão submetidas no encontro de hoje."
"Compreendido. Vou dirigir-me à Sala de Conferências 3 imediatamente."
"Muito obrigado, Membro Shion."
Havia uma nota de excitação na voz do jovem homem.
"Está prestes a chegar, certo? Vamos limpar os antigos poderes políticos e construir o caminho para o estado ideal. Está finalmente a começar."
Shion respirou fundo, e chamou o nome do homem.
"Torey, quero que tenhas cuidado com o que dizes. Para nós, não há tal coisa como poder antigo e poder novo. Queremos reunir a sabedoria de cada e todas as pessoas para progredir adiante, um pouco da cada vez. Não há outra alternativa."
"Oh... certo. Peço desculpa."
"Não tens de pedir desculpa, mas―" Devias pelo menos desconfiar de escutas telefónicas, Torey. Shion desligou o intercomunicador, e suspirou de novo.
Voltou-se para fitar a janela.
Um penetrante céu azul espalhava-se acima da sua cabeça.
Shion fechou a janela, e voltou as costas à infinita extensão de azul.


No capítulo anterior o Nezumi disse que Shion era sádico, agora a mãe dele diz que ele é bom com as mãos, haha ;)

Pronto, pronto, chega de piadas rasas. Que acharam do capítulo? Deprimente, eu sei, mas como disse antes, mantenham a esperança. E de qualquer forma, os momentos com a Inukashi e o Rikiga foram hilariantes >.< 

Mas é mesmo. A espécie de premonição que o Yoming faz sobre o Shion a tornar-se um monstro ditador, ou a última frase em que o Shion volta as costas ao céu azul e à janela, são de arrepiar e cheias de significado. Da primeira vez que li o capítulo até tremi. 


1 comentário:

  1. Lembro quando li esse capítulo em inglês e fiquei inconsolável por dias. Dá um aperto imaginar a solidão que o Shion sente, ser aquele que fica e espera. Pessoalmente, eu não gostei do fardo que foi colocado em cima dele, pela Safu e pelo próprio Nezumi, ainda que os dois confiassem nele, é quase como se eles tivessem tirado seu poder de escolha e o submetido a seguir esse caminho.

    Você me salvou quando citou a cronologia que se passa o epílogo, eu tinha esquecido completamente dele! Isso ajudou a acalmar meu coração e seguir tendo fé que o Shion não vai sucumbir e que a reunião com o Nezumi virá.

    Obrigada pela tradução, embora já tinha lido em inglês, eu não sou fluente, então muitos detalhes (importantes) escaparam. Muito obrigada!

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