24.8.15

Tradução da novel Beyond - cap 1


Claro, dito e feito. Não me atreveria a lançar a postagem anterior se não tivesse já um capítulo de Beyond traduzido - para quem ainda não sabe do que falo, veja a postagem: www. Este primeiro capítulo centra-se sobre Inukashi, na altura em que Shion e Nezumi ainda viviam no Bloco Oeste e a cidade de No.6 continuava dentro da muralha. Inukashi está doente. Para ter a certeza de que ninguém fica confuso, começará a relatar "o presente" - isto é, o presente dessa altura - depois serão apresentadas memórias de como a guarda-cão conheceu Nezumi, e só então se retoma ao presente. O começo pode não ser dos mais interessantes para toda a gente, mas garanto que o final não tem como desagradar a ninguém, além disso, foi bom ler mais sobre ele/ela. Ainda estou para fazer o tal post em que discuto se Inu é homem ou mulher >.< Para quem não sabe, no anime é mulher, mas na novel isso nunca fica explícito, e portanto eu traduzi como "ele". #Enjoy

NO. 6 ALÉM

Dias de Inukashi

O teto andava às voltas. Na verdade parecia que rodopiava.
Huh? O quê que se passa?
Inukashi colapsou na cama e fechou os olhos. Sentia-se doente. Não apenas tonto, também sentia náuseas. Manteve os olhos fechados enquanto tomava várias respirações profundas. Inalou através do nariz, deixando o ar assentar-lhe no estômago, e exalou lentamente através da boca.
Uma, duas, três vezes...
Qualquer doença, física ou mental, eram usualmente curada por isso―quer fosse o seu coração agitado, pensamentos desordenados, feridas latejantes, ou dores de cabeça maçadoras. Ninguém lhe ensinara isso; foi algo que aprendeu sem sequer se aperceber. Mas quanto ao seu estômago vazio, não havia nada que pudesse fazer. Independentemente de quão profundamente inalasse para fazer o seu estômago expandir, assim que exalasse ficaria achatado novamente. Não havia nada a fazer quando ao seu corpo, cada vez mais frio da fome.
Detesto sentir fome. É horroroso. Inukashi abanou a cabeça. Fome era como um demónio. Com as suas presas e garras afiadas, desenraizava e roubava qualquer vontade de sobreviver, qualquer esperança de viver.
Mas agora, ele estava bem.
Claro, continuava faminto. Inukashi não recordava a última vez em que esteve de estômago cheio. Vazio―era assim que o estômago vinha. Essa foi ideia sua.
Levantou-se cuidadosamente na cama. Já não se sentia mais tonto, mas as náuseas continuavam presentes. Sentia-se pesado, como se alguém lhe tivesse atado pesos aos braços e pernas. Sinto-me como se alguém tivesse atado esferas de metal a mim, como se fosse um prisioneiro de algum país.
Isto é mau.
Deitou-se de novo, e mentalmente fez um estalido com a língua. Padecer de doença no Bloco Oeste era como acenar à morte ao teu lado. Aqui, havia xamãs do subterrâneo de natureza questionável, ou doutores auto-proclamados, mas nenhum era capaz de fornecer o tratamento adequado. Inukashi não conhecia nenhum, pelo menos.
O seu corpo encontrava-se pesado. Com os olhos assim fechados, sentia-se como se tivesse sido arrastado para as profundezas marinhas. 
Em alturas destas, tenho de pensar em coisas divertidas, disse a si próprio. Divertidas? Alguma vez me senti bem comigo mesmo?
Já. Ontem à tarde, lembras-te? Estavas livre da fome, apenas ligeiramente. Sim, vês, foi isso. Foi extrema felicidade.

Tinha comido alguma carne. Tinha achado um pedaço de carne crua na carga de restos de comida do Edifício Correlacional. Não eram as sobras de alguém: era um pedaço de carne que nem sequer tinha sido cozinhado. Livre de hematomas ou podridão. Sob inspeção próxima, era peculiarmente plana. Talvez o chefe dos funcionários de restaurante do Edifício o tenha deixado cair no chão, onde alguém o calcou.
"Oh! Arruinou um pedaço perfeito de carne!"
"Oh, desculpe. Mas o senhor deixou-o cair."
"Bem, não há nada a fazer. Não pode ser mais usado."
A carne fora atirada para um caixote de lixo metálico e esquecida. Eventualmente, fez o seu caminho até às mãos de Inukashi juntamente com o resto do lixo e as sobras da comida―talvez tenha sido a sua jornada. Tanto faz. Não estou interessado no quê que a sua jornada se pareceu, ou como veio aqui parar. Tudo o que interessa é que estou a segurar um pedaço de carne na mão.
Foi uma sorte incrível.
Ele quase literalmente dançou de alegria. Quando foi a última vez que teve uma coisa tão boa em mãos? Vasculhou e vasculhou nas suas memórias, mas nada lhe veio à mente. Inukashi lambeu os lábios enquanto segurava o naco de carne, reluzindo de gordura. Engoliu avidamente.
Não sabia que tipo de carne era, mas não se importava―desde que não fosse de humano ou de cão. Inukashi regressou à sua habitação em ruínas, e saltou diretamente para a cozinha. Escolheu vegetais e ossos entre as sobras da comida, atirou-os para uma panela, e deixou ferver. No instante antes de acabar de cozinhar, dividiu o naco de carne em porções e adicionou-as. Considerou deixar alguma de parte a curar, ou levar para vender no mercado, mas no final decidiu ir opor-se a ambos. Inukashi tinha noção de que comida não periscível era uma preciosa comodidade; também sabia que se o levasse para o mercado, obteria uma quantia decente de dinheiro. Mas acho que vou acabar com este bocado de carne de uma vez só. Foi a sua decisão. Tenho o direito de me tratar bem de vez em quando. Vou aproveitar a grande sorte que tive―a sorte que o céu decidiu pôr-me no caminho por acaso.
É isto o Bloco Oeste, onde se é incapaz de prever o que acontecerá amanhã. Nem Deus garante o que quer que seja a alguém neste lugar. Devo apreciar o presente sem pensar sobre o amanhã.
O vapor ergue-se da panela.
Um cheiro apetitoso escapou. Os cães aproximaram-se, atraídos pelo aroma. 
"Eu sei, eu sei. Vocês vão receber alguma carne, também. Não se preocupem."
Branco, preto, às manchas, acastanhado. Pelagem longa, pelagem curta, pelagem encaracolada. Orelhas descaídas, orelhas em pé, uma só orelha Inukashi mantinha vinte ou trinta cães consigo, variando entre tão grandes como um bezerro ou tão pequenos como um gato. Por algum motivo, o número nunca aumentava. Nasciam cachorrinhos todos os ano, então isso significava que um número igual de cães provavelmente morria ou desaparecia. 
Uma cadela velha morreu ontem. Foi uma grande mãe, tendo dado a nascer imensos bebés e cuidando de aproximadamente metade deles com sucesso. Lembro-me dos seus filhos e filhas a lamber o seu corpo frio e rijo à vez.
Cães eram profundamente leais. Eram quentes, e gentis. Tinham uma compaixão definitiva. Nunca traíram os seus amigos ou família. 
São muito mais decentes e de confiança que seres humanos.
"Mais assustador que a fome, que a terra gelada, são os humanos."
Lembro-me que essa era uma fala do Avô. Inukashi abanou a cabeça enquanto mexia a panela com ua espátula de madeira. Porquê que tive de me lembrar dele? Não me vai ajudar a satisfazer a fome. Mas, não―abanou a cabeça ainda mais forçosamente.
Tenho de me lembrar dele pelo menos uma ou duas vezes por ano, pelo seu bem. Tenho de lembrar e recordar quão precioso ele foi para mim. Eu devo a esse velho. Nós não esquecemos as boas ações que as pessoas fizeram por nós: é outra virtude de nós cães
Não sei quão velho o Avô era, ou a razão de ter vivido aqui nas ruínas com os cães, ou de onde ele veio ou para onde foi. Não sinto a necessidade de saber, nem pretendo descobrir. Mas não teria sobrevivido se não fosse pelo Avô. Sinto o peso do que ele fez em cada polegada dos meus ossos.
Era Inverno quando o conheci.
Lembro-me do vento gelado e da brancura da neve que se empilhava à minha frente. Então sim, era inverno. Há anos e anos atrás. 
Não tinha memórias da sua mãe, nenhuma recordação do pai; ainda assim, era capaz de relembrar vividamente o vento glacial e a neve dançante. Recordava os passos que se aproximavam, uma língua de cão a lamber-lhe a bochecha, a quentura de um peito humano; mesmo a sensação flutuante que sentiu por um instante quando foi levantado.
Que idade tinha na altura? Seria um bebé? Provavelmente, ah, porque continuava a beber leite da Mãe. Bebés certamente lembram-se mais do nós lhes damos crédito.
Ele era um homem velho que habitava nas ruínas do hotel, e pegou em Inukashi e ergueu-o. Ou talvez se possa dizer que foi o homem que lhe pegou, mas foi a cadela que o ergueu.
Ela era jovem, e tinha acabado de dar nascimento a uma ninhada, Inukashi. Inukashi amamentou-se ao seu peito, e dormiu aninhado na sua barriga com os outros cachorrinhos. Graças a ela, conseguiu evitar morrer de fome. Tinha evitado congelar até à morte. Tinha sobrevivido. 
Este cão inteligente e de maneiras doces foi a única "Mãe" de Inukashi. 
"És uma criança estranha... ou especial, devo dizer." O velho pronunciou esta frase quando Inukashi tinha crescido o suficiente para saber andar, e era capaz de competir com os seus companheiros cães a atacar comida. O velho tinha falado numa voz quente, reflexiva, gentil. Inukashi relembrava-o bem, também. 
"Espechal?"
"Significa que és diferente dos outros. Até agora, nunca tinha ouvido falar, muito menos visto, um bebé que pudesse alimentar-se e crescer de leite de cães. Quando te trouxe, para ser sincero, pensei que nem durarias três dias. Mas trouxe-te mesmo assim, porque queria dar-te um enterro apropriado."
"Terro?"
"Significa cavar a terra e atirar-te lá para dentro. Quando morresses, eu planeava colocar-te debaixo da terra e dar-te um enterro assim. Eu não podia deixar-te definhar ao ar livre. Eu não queria que passasses pelo que a maioria dos bebés passa nesta terra, apodrecer no meio da rua, recebendo bicadas dos corvos, sendo comidos pelos animais. Normalmente, eu teria... sim, eu ter-te-ia deixado onde estavas. Teria passado por ti e fingido não notar. Não seria diferente do que sempre fiz. Mas ter decidido tirar-te da rua... porque raio é que eu quis enterrar-te?"
"Porquê?"
"Não sei." O homem velho abanou a cabeça lentamente, duas vezes. "Sinceramente não sei. Não me entendo a mim mesmo. Porquê que te colhi e trouxe para casa? Já vi imensos bebés, dezenas deles, morrer. Porquê que decidi estender-te a minha mão? Não sou capaz de explicar isso. É parte do motivo de ter dito que és uma criança estranha."
Inukashi teve arrepios. Emitiu um suave som estrangulado ao sentir o seu corpo ficar frio desde a ponta dos dedos. Um suor frio escorreu-lhe pelas costas abaixo.
Estava assustado. Em simultâneo, sentia-se sobrecarregado com o impulso de rir em voz alta. Queria lançar a cabeça para trás e deixar o riso ecoar até aos céus. 
Ele estava vivo devido à boa sorte de uma mera coincidência. Se não fosse pelo impulso do velho, o seu corpo, a sua carne, os seus ossos teriam sido devorados pelos corvos e pelas bestas. Que milagre foi, que sorte. Dentro do seu coração estava uma tempestade de medo, alívio, e a vontade aguda de de entregar a um riso histérico. 
Por essa altura, Inukashi já se tinha apercebido de quão árdua era a tarefa de sobreviver a cada dia no Distrito Oeste. Pressentia que o seu próprio futuro estava repleto de tribulações e sofrimento, tanto quanto subir um penhasco íngreme de mãos vazias. 
Mas queria viver. Queria viver, sobreviver, e prolongar os limites da sua vida, ainda que só por um minuto, por um segundo. Para isso, faria qualquer coisa, não importa quão feia, enganadora ou vergonhosa fosse. Era fácil morrer. Tudo o que precisava era de uma corda e uma árvore com galhos robustos. Também podia saltar de um penhasco. Ou, podia correr a gritar até ao Edifício Correlacional―era uma opção também. Os soldados em patrulha iriam atingi-lo no peito ou na cabeça sem hesitação.
Poderia ser acabado num instante, sem importar o método escolhido. Não sofreria muito. Pelo menos, não pensava que sim. Era tão óbvio como o sol nascer a este. 
Mas não quero. Inukashi cerrou os punhos, mesmo continuando pequenos. Eu não quero desaparecer tão facilmente. Não vou escolher a morte por vontade própria. Vou sobreviver custe o que custar.
Vou pisar para aceitar o desafio. Vou desafiar o destino que me deixou abandonado na rua no Bloco Oeste. Vou desafiar o mundo que torna a sobrevivência tal dificuldade. Vou desafiar os tipos que fizeram o mundo assim―e vou vencer. De facto, estou a vencer agora mesmo por continuar a sobreviver.
Enquanto criança pequena, Inukashi não sabia falar. Não sabia como expressar as decisões do seu coração em palavras e contá-lo aos outros. Mas o velho não obstante nunca sorriu ou colocou uma mãe na cabeça de Inukashi. 
"Tenho a impressão de que serás capaz de o fazer," murmurou.
Foi cerca de um ano depois, no começo do Inverno, quando o velho desapareceu. A sua cama estava vazia quando Inukashi acordou de manhã, e o homem velho não estava em lugar nenhum para ser visto nas ruínas. Mas Inukashi não foi particularmente procurá-lo frenético, também. Algures no seu coração tinha desistido, sabendo que não valia a pena. Ele estava desconcertado, mas não se sentia solitária. Os seus cães estavam com ele. Desde que os cães estivessem ali, ficaria bem. 
O Avô provavelmente sabia disse, também. Ele sabia bem quando foi embora. Terá pressentido a chegada do fim da sua vida, ou acho um lugar onde queria ir? Seja como for, está provavelmente lá fora algures agora, como parte da terra. As pessoas não se podem tornar nas estrelas do céu, mas podem sempre retornar à terra. Podem deixar as suas memórias para trás, também. 
Obrigado, Avô. Nunca me esquecerei de tudo o que fizeste por mim. De vez em vez, vou certificar-me de lembrar-te e recordar memórias queridas. Mas sabes, o teu rosto está a tornar-se desfocado ultimamente. Continuo a conseguir recordar as pequenas coisas: a barba branca desgrenhada; como a cabeça careca brilhava em tons rosados; como a sobrancelha direita era estranhamente grossa; as falas suaves; Recordo-me dessas coisas com tanta clareza, mas não sou capaz de imaginar o teu rosto. Pergunto-me porquê? Mas, bem, aí tens. Lembrei-me de ti hoje. Isso basta, certo? 
Mexeu novamente a panela com a espátula. 
Um cão às manchas ladrou. Os outros cães em coro começaram a ladrar, também.
"Eu sei, eu sei. Certo, vamos dar início ao festim. Afastem-se, rapazes. Mas têm de esperar que arrefeça antes de comer. Vai ser um inferno se queimarem a língua."
Quando Inukashi acabou de distribuir a sopa pelas tigelas dos cães e começou a sorver a sua própria porção do caldo de carne, tinha-se esquecido completamente do velho
O passado tendia a meter-se no caminho das coisas. Se continuasse a olhar para trás, não seria capaz de ir em frente. 
Inukashi comeu um pedaço de carne e saboreou o sabor e sensação na sua boca. Parecia um desperdício engolir; queria saboreá-lo para sempre. Mas o pequeno pedaço deslizou demasiado facilmente pela garganta abaixo e assentou no seu estômago. Assim que terminou a sopa rica da carne, porém, sentiu um calor descer aos seus ossos. Permanecendo radiosamente quente, deitou-se na cama. Os cachorrinhos contorceram-se uns por cima dos outros para subir, e lamberam-lhe a cara. As suas pequenas línguas cor-de-rosa eram reconfortantes.
Ele estava feliz. Até se sentia como se tivesse tomado toda a felicidade do mundo para si mesmo. Imerso em êxtase, Inukashi rendeu-se ao sono.
Sentia náuseas. Temia que o teto começasse à roda de novo se abrisse os olhos. 
O quê que me deu?
Uma parte da sua cabeça começou a latejar ensurdecedoramente. O seu corpo parecia ainda mais pesado. Estava empapado em suor. Era uma febre pouco natural, muito diferente do calor que sentira na noite passada.
Nem a língua dos cachorrinhos o reconfortavam. A pele deles ardia irritativamente. Nunca tinha considerado os seu cães cansativos antes.
Nenhum número de respirações profundas parecia melhorar a sua condição.
O quê que me deu?
Precisamente após se ter questionado, sentiu um arrepio percorrer-lhe as costas. Medo inflamou fortemente no seu coração.
Isto está além de sério.
E se eu não me conseguir levantar de todo? E se nem me puder mover?
Era fatal cair de doença no Distrito Oeste. Não era preciso muito para matar um habitante do Distrito Oeste, privado de comida decente e vivendo na miséria como ele vivia. Apenas uma pequena ferida bastava: um corte fundo no mindinho, um raspão na parte dianteira do pé. O mesmo para pequenas doenças: tonturas, náuseas, febre―qualquer coisa que mantivesse as pessoas na cama. Alguém definitivamente vivo há três dias atrás podia estar deitado na rua como um cadáver hoje. Este tipo de coisa acontecia todos os dias.
Caramba.
Inukashi mordeu o lábio, e deslizou a parte superior do corpo para cima. Recostou-se contra a parede, e deixou escapar uma longa respiração.
Então a carne de ontem foi a minha ultima ceia, huh. Caramba. Isto não tem piada. Não vou deixar que dê conta de mim.
Mordeu o lábio com mais força. O sabor do sangue alastrou dentro da boca. Murmurou "caramba" mais vezes para si mesmo em grande escala. Mas nenhuma força vinha. Era cansativo mexer um único dedo. Se se forçasse a levantar, seria subjugado por tonturas e náuseas simultâneas. Colapsou de novo na cama. 
A sua consciência começou a desaparecer.
Um vento gelado assobiou por uma fenda na janela. O frio fez Inukashi retornar à realidade. Queria gritar. Queria gritar por ajuda, tão alto quanto conseguisse. 
Alguém me ajude... Alguém, por favor.
Um cão despertou num canto da divisão e aproximou-se dele. Sentou-se de cócaras ao lado da cama, e olhou para ele. Era um grande cão castanho, descendente da linhagem da mãe de Inukashi. Herdara a sua inteligência e profundos olhos negros.
O cão sentou-se de orelhas espetadas, como se à espera das ordens de Inukashi.
"...Eu quero que tu... os chames por mim..." Apontou para o exterior da janela.
Além espalhava-se um céu de inverno, carregado de nuvens de neve. A luz lutava para atravessar as nuvens, e parcamente atingia o solo em baixo. Mais uma vez, o Bloco Oeste terminaria o dia tão gelado como tem estado desde o começo. 
O cão empurrou a porta lapidada e deixou a sala. As suas dobradiças enferrujadas guincharam desagradavelmente. Inukashi supostamente estaria habituada ao som, que no entanto, esfaqueou-lhe os tímpanos e agravou a náusea. 
"Por favor.. Chama-os..."
Ajuda-me.
O cão desceu as escadas. Os cachorrinhos amontoados choramingaram lamentosamente.

Ele tinha estado a sonhar. Um sonho de há muito tempo atrás. Há quantos anos foi?
O velho há muito tinha desaparecido. Inukashi estava sozinho―mas com os seus cães. Ele tinha finalmente apanhado o jeito de conseguir por conta própria restos de comida, assim como ensinado a si mesmo a cozinhá-los ou vendê-los.
Estava a descer um lance de escadas.
Eram degraus concretos conduzindo ao subterrâneo, não tão estragados como os da habitação de Inukashi. O edifício encontrava-se maioritariamente em ruínas à superfície, mas parecia que as partes no subsolo permaneciam intactas. Assim que Inukashi alcançou o fundo, deparou-se uma porta. Extendeu uma mão cautelosa  para o puxador. 
O edifício localizava-se próximo à entrada do Bloco Oeste. A floresta próxima em volta era pontilhada por quartéis. Também próxima brilhava a Cidade Sagrada, No. 6. Para ser exato, era a muralha externa de No. 6. A muralha externa feita de uma liga especial de ouro que brilhava como se estivesse diante dele. A muralha dividia claramente o "aqui" e "ali", céu e inferno. Nada faltava dentro dos muros: camas quentes, comida abundante, instalações médicas de ponta, residências confortáveis. Não havia ameaças à vida, e as pessoas podiam viver sem sequer saber o que era a fome ou o frio. Inukashi também ouvira dizer que o sofrimento e o medo nem sequer existiam lá.
A utopia, merecedora do seu título de Cidade Sagrada.
Inukashi não ouvira muito de No. 6 no Distrito Oeste. Toda a gente permanecia silenciosa, e recusava-se a tocar o tópico como se o nome fosse tabu.
Negócio duvidoso, pensou Inukashi―ou antes, sentiu.
Utopias e Cidades Sagradas simplesmente não existiam neste mundo. No. 6 era uma cidade-estado fundada por humanos. Desde que humanos estivessem envolvidos nisso, algo tinha de se separar. Os teus ideias não são para perfeição para mim, e felicidade para mim pode ser algo que não consigas suportar. É o mundo humano para ti. Humanos não podem criar uma utopia. O melhor que eles são capazes de fazer é discutir, discordar, dobrar-se um bocado pelos outros, e sossegar algures entre ambas as coisas. É tudo.
No. 6? Esse lugar é tão duvidoso que me deixa de cabelos em pé. A melhor coisa a fazer é ficar bem longe.
Por esse motivo Inukashi nunca se aventurou a aproximar-se desde sítio. Detestava ver a muralha de No.6 onde a sua vista alcançava. Se tivesse experimentado uma colheita melhor naquele dia, provavelmente nem se teria posto próxima dali. Mas um dia inteiro a vaguear pelo Bloco Oeste apenas lhe garantira um ou dois pedaços de vegetais e uma única tira de carne seca. Mal era suficiente para se sustentar, muito menos aos seus cães. Por essa altura, Inukashi não sabia como pôr as mãos em fontes periódicas de restos de comida. A sua única escolha era apertar o estômago vazio e pedir desesperadamente. No mercado, recebera o som martelante dos açougueiros; na taverna, a gerente amaldiçoara-o, mas ele permaneceu imperturbável. Inukashi estava bem habituado ao abuso, aos insultos, e à dor física. 
Tenho de fazer alguma coisa quanto a esta fome.
Quando voltou a si, estava de pé na floresta. Parecia que tinha quase subconscientemente caminhado nesta direção, pretendendo encontrar uma única noz para apanhar. Foi aí que se deparou com o edifício abandonado a desmoronar. Pousou casualmente uma mão no muro, que deslizou para o lado sem qualquer resistência revelando escadas que conduziam à base.
Inukashi torceu o nariz. Espremeu os olhos, e esticou as orelhas. 
Nem pressentia nem cheirava a presença de ninguém.
Completamente abandonado. huh.
Desceu cuidadosamente, passo a passo.
Inukashi sabia que uma mulher idosa estranha e um rapaz (seu neto, presumiu) viviam supostamente ali. Tinha-os visto antes duas vezes. A mulher velha tinha um ar severo no olhar, como se nunca tivesse sorrido na vida. 
Eu sei, eu sei. Eu lembro-me.
Essa velha tinha ideias engraçadas. Atacou alguém importante de No. 6―o major ou presidente ou o que fosse. Tudo por conta própria, assim. Mancou na direção dele, de faca empunhada, e foi baleada até à morte. Espera―ou terá sido presa e atingida? Seja como for, acabaram com ela bem depressa. Não é de surpreender, haha.
Inukashi escarneceu dela mentalmente. Foi um rumor que ouvira no mercado. Não estava seguro da sua validade.
O seu estômago roncou. Suava a um pedido de ajuda.
Não posso continuar assim. Dá-me comida. Rápido, rápido, rápido, rápido, rápido.
Caramba, não há nada aqui? Côdeas de pão, carne podre, não me importa. Qualquer coisa para acalmar o meu estômago.
Agarrou a maçaneta da porta. A porta estava destrancada. Era ligeiramente pesada, mas com um pequeno empurrão, abriu sem grande resistência.
"Oh!" Um som semelhante a um arfar ou a uma exclamação escapou pela sua garganta. "Que raio é isto?"
Havia pilhas e pilhas de livros até estender de vista. Estavam aqui e ali, empilhados ordenadamente ou dispersos descuidadamente ao longo do chão. O chão em si era quase indiscernível. A divisão não parecia ter nada além de livros. 
Esse momento foi o primeiro encontro de Inukashi com livros. Conhecia palavras; também era capaz de escrever, desde que nada muito difícil. O velho ensinara-o. Mas Inukashi não sabia nada sobre livros. Nuca tinha ouvido a palavra "livro", nem sabia que se referia a estas folhas de papel ligadas com palavras impressas. Não tinha nenhuma pista por onde começar a compreendê-los. Percebeu instantaneamente que não eram comida. Só para se certificar, pegou num livro de uma pilha próxima à porta, e trincou-o. Tinha escolhido este porque a maçã madura ilustrada no fundo branco parecia deliciosa.
Horrível.
Inukashi esfregou a boca com as costas da mãe,  atirou-o para longe. Duro, seco, e definitivamente algo não comestível.
Foi em frente, chutando os livros tombados para fora do caminho. Parecia só haver livros ali. 
Tsk. Tanto trabalho desperdiçado. Inukashi fez um estalido com a língua e preparava-se para girar nos calcanhares quando o seu coração palpita num impulso tremendo. Encontrara algo além de livros.
Estava colocado numa prateleira (cheia de livros)―alguns volumes tinham sido afastados para reservar espaço para isso. Era uma pequena caixa prateada, assente no topo de uma toalha.
O que é isto? Alguém vive aqui?
Farejou de novo. Tal como dantes, não cheirava a nada. Inukashi tirou a pequena caixa prateada da prateleira. Abriu a tampa.
Achou-se a si mesmo a assobiar.
Oh, estou a ver. Isto é um belo tesouro. Consegui alguma recompensa.
A caixa revelou ser um kit de emergência, com ligaduras, pinças, gaze, e um número de medicamentos armazenados em ordem dentro. Até tinha um bisturi. Parecia-se com algo que teria sido usado em No. 6. Inukashi não fazia ideia de como isso terminara aqui. Não fazia questão de descobrir, também. Não queria saber da sua jornada ou história. O que importava é que estava a segurá-lo nas próprias mãos. Era tudo.
Itens medicinais de qualquer tipo eram cobiçados no Bloco Oeste. Desinfetante, principalmente, era comercializado a um bom preço. Por vezes uma pequena garrafa de desinfetante podia conseguir duas moedas de prata. 
Inukashi aproximou o nariz.
Isto é cem porcento puro, sem aditivos―que coisa boa. Olha só como me faz arder o nariz. Heh, esquece a prata―isto pode transformar-se numa moeda de ouro se tiver sorte. Fiz uma grande descoberta. A minha sorte está finalmente a mudar.
Inukashi sorriu para si mesmo enquanto fechava a tampa da caixa. Ia erguê-la nos braços quando reparou numa mesa pequena coberta de livros. 
No topo, estava um pequeno rato. Não estava vivo. Fora habilmente construído, mas era claramente artificial. Inukashi inclinou-se para a frente, ainda a embalar a caixa. A barriga do rato descansava para trás revelando o seu interior complexo. 
Um robô?
Inukashi ia inclinar-se mais ainda quanto sentiu um arrepio violento. Sentiu tremores formarem-se nas costas. 
"Não te mexas" escutou uma voz ao ouvido. Desta vez, a pele de cada bocadinho do seu corpo ficou eriçada. Não por causa da lâmina que estava a ser pressionada contra o seu pescoço. Foi porque a voz era completamente isenta de calor. Toda a emoção nela foi suspendida e gelada. Essa explosão de gelo congelou até as próprias emoções de Inukashi.
Era a voz de um assassino.
Era a voz de alguém que podia tirar uma vida humana sem hesitação, sem pingo de emoção.
E―acima de tudo―este tipo apareceu atrás de mim.
Se Inukashi podia jurar sobre alguma coisa, era a sua habilidade em pressentir a presença de pessoas. O seu sexto sentido era tão bom como o de qualquer cão. Quanto mais emocional a pessoa fosse, mais Inukashi sentiria a sua presença na sua pele. Graças a essa habilidade, tem sido capaz de escapar do perigo e das disputas de novo e de novo. Mas desta vez, não tinha sentido nada. Nem sequer tinha sido capaz de discernir o mais leve sinal da pessoa que ascendia atrás dele. 
Talvez não seja humano? Um homem morto que veio a rastejar das profundezas do Inferno? Um demónio? Um mutante?
Os seus dentes recusavam-se a ficar juntos. Os seus molares batiam, fazendo um estranho som mecânico. Ecoava profundamente nos seus ouvidos.
Click-click. Click-click.
Click-click. Click-click.
Inukashi rangeu os dentes e apertou o estômago.
"E-espera um minuto. Eu estava só..."
"Devolve a caixa."
"C-Certo, certo! Vou fazer como mandas." A tremer, Inukashi recolocou a caixa na prateleira.
"Aq... aqui está. Devolvi-a. É suficiente, certo?"
"Suficiente? Estás a brincar comigo?"
A lâmina moveu-se muito suavemente. Sentiu um solavanco de uma dor aguda. Esforçou-se para conter o grito que estava prestes a rasgar-lhe a garganta. Tinha as axilas suadas.
"Ladrões encontram a morte neste lugar. Não te devias lamentar por seres morto."
"S-sim, mas quero dizer, eu não me posso lamentar se já estiver morto, certo? H-hey, eu vivo nas ruínas, já agora... conheces? Fica no outro extremo, as ruínas de um hotel. É o meu lugar. Eu vivo lá com os meus cães. O meu nome é... uh, bem, eu não tenho um nome, mas sabes―quem precisa de um nome num lugar deste, não é? As pessoas chamam-me inukashi―Guarda-cão. Cães são parte do meu negócio. Haha, mas quem quer saber do meu nome, não é? De certa forma gosto dele, porém. Ha ha. Então se alguma vez me quiseres chamar pelo menu nome, é Inukashi."
Inukashi continuou a falar. Sentia que se fechasse a boca, a garganta seria cortada no silêncio que cairia a seguir.
"Hey, vá lá. Estou a implorar-te. Vou pedir desculpa, então podes por favor perdoar-me? Por favor? Desculpa. Nunca mais farei isso." Tentou implorar pateticamente. "Não me mates. Estou de joelhos. Ajuda-me, por favor. Eu... Eu ainda não quero morrer. Eu realmente não quero morrer. Desculpa, peço imensa desculpa. Nunca mais tocarei nas tuas coisas de novo. Prometo. Por favor, apenas não me mates."
Inukashi não estava a atuar. Estava a suplicar fervorosamente pela sua vida.
Não me mates, por favor. Deixa-me ir.
Por favor, por favor, por favor, por favor, por favor, por favor.
A faca foi afastada. De repente, a base do seu pescoço parecia muito mais leve. Inukashi deixou escapar um longo suspiro. Os músculos do seu pescoço doíam, de terem estado tenso aquele tempo todo. Um ponto no seu pescoço pulsou ligeiramente quando o pressionou com a mão, mas nenhum sangue veio. 
O manejador da faca tinha feito um leve corte, tão superficial quanto a primeira camada de pele no pescoço, para congelar a vítima de medo. Mão o suficiente para sangrar, apenas o bastante para fazer a vítima sentir dor.
Eu sabia. A pessoa atrás de mim não é humana. É um homem morto, um demónio, um mutante...
Inukashi voltou-se lentamente, continuando agarrado ao pescoço. A verdade é que ele não se queria voltar. Queria tomar o caminho mais curto até à  sua habitação. Mas os seus pés hesitavam; sentia que no momento em que voltasse costas e desatasse a correr, a faca seria profundamente enterrada nas suas costas. 
Ele voltou-se lenta, lentamente.
Huh?
Teve de pestanejar. Sabia que estava boquiaberto.
A figura diante dele não era nenhum homem morto, demónio, ou mutante. Era um rapaz vestido com uma camisa axadrezada. Devia ser rapariga. Não, era um rapaz. Uma rapariga não seria capaz de produzir uma voz gelada como aquela. O rapaz simplesmente parecia uma rapariga.
O rapaz tinha cabelo comprido que chegava aos seus ombros e lhe escondia a testa. O seu pequeno rosto branco era misteriosamente proporcional. Inukashi tinha imaginado os olhos do rapaz refulgir repletos de intenções assassinas, mas eram serenos e imperscrutáveis. 
O rapaz tinha olhos de uma cor estranha.
Um elegante cinzento escuro. Era a primeira vez que Inukashi via uma cor assim. 
O rapaz aparentava ser mais alto que Inukashi, mas ele apercebeu-se de que as suas idades eram próximas. Mas Inukashi também não tinha a certeza quanto à sua idade.
O rapaz embainhou a espada, envergando ainda uma expressão em branco. Inukashi sentiu-se esmagado de alívio. Depois, ficou irritado consigo mesmo por estar aliviado.
Eu estava a ser ameaçado por este magricela? Queria dar um estalido com a língua de frustração. Geez, Eu nunca seria capaz de viver tão baixo.
"Podias ter escolhido uma camisa melhor para vestir." Inukashi exibiu um sorriso enquanto erguia o queixo. Pretendia parecer calmo e sereno. "Mas a qualidade não parece muito má. Não algume coisa com que te cruzes frequentemente no Distrito Oeste."
"É uma camisa emprestada."
"Emprestada? Onde é que conseguiste emprestada uma peça de roupa tão boa, huh? Não me digas que a trouxeste de No. 6."
Tinha-o dito como uma piada, mas assim que colocada em palavras, sentiu que essa era a única possibilidade. A qualidade superior da camisa era evidente à primeira vista. Parecia suave ao toque, quente, e durável. O kit de emergência que tinha acabado de devolver à prateleira também era um produto do interior do muros, sem dúvida disso.
"Quem raio és tu? Não me digas que vieste dessa―" Inukashi interrompeu-se. Tinha acabado de ver o rapaz pegar numa tira de carne seca do bolso do peito e morder a ponta.
"Hey... não me digas que isso é..." Inukashi vasculhou o saco pendurado à cintura. Estava vazio. Tinha quase a certeza de ter colocado o pedaço de carne seca ali, mas fora-se. 
"Vou ficar com isto", disse o rapaz. "Como compensação pelo roubo."
"B-Besteira! Quem é o ladrão agora? Devolve isso, é a minha carne! Devolve!"
Heh. O rapaz riu-se. O seu sorriso parecia ao mesmo tempo inocente e despreocupado.
"Queres tentar tomá-lo de volta à força, Inukashi?"
"Gh..." Inukashi mordeu o lábio. Ele não era alguém contra quem ele pudesse ganhar de cabeça erguida―os seus instintos diziam-lhe isso.
Caramba, devia ter trazido os meus cães. Se os tivesse comigo, poderia derrotá-lo num instante.
Mas os seus cães não estavam aqui. Inukashi estava sozinho.
"...Está bem. Fica com ele."
"Que bom menino. Deves saber quando ouvir. Vai manter-te vivo por mais tempo."
"Caramba, pára de tirar sarro de mim!" Apenas observa. Vou conseguir a minha vingança.
Inukashi recuou até à porta. Agarrou a maçaneta. Não havia razões para permanecer ali mais tempo que o necessário.
O rapaz sentou-se no topo de uma pilha de livros e não disse nada. Apenas o seu olhar estava fixo em Inukashi. Os movimentos de Inukashi estavam completamente rendidos a esse olhar. Os seus braços e pernas  ficaram tensos e estranhos, recusando-se a mover suavemente.
"...O que raio és tu...?" Repetiu a questão de apenas instantes atrás. Desta vez, mais seriamente. "Vives aqui?"
"Sim."
Não estava à espera de uma resposta.
"Sozinho?"
"Sim."
"Esta casa tem estado abandonada há anos. Não tem havido ninguém a viver aqui há anos―pelo menos, não era suposto viver. De onde raio vieste? E porquê que tens uma camisa e um kit de emergência claramente de No. 6? Oh, e o rato de brincar―o que é aquilo? Parece um robô. Não me digas que construíste essa coisa?"
Inukashi sabia que devia correr para longe o mais brevemente possível, mas a sua boca continuava a mover-se. Questão após questão escapou dos seus lábios.
"Falas muito, não falas? Estou surpreendido por ainda não teres mordido a língua de falar tanto." O rapaz abanou a cabeça. Um sorriso divertido atravessou o seu rosto.
Inukashi quase se sentiu atraído por ele. O seu coração batia cada vez mais depressa.
Este tipo é perigoso. Mais perigoso que um assassino, e de longe um incómodo muito maior. Este era outro instinto seu. E tinha a certeza de que não era despropositado.
Não tenhas nada a ver com ele. Vai para longe daqui, e nunca mais voltes―uma voz de aviso ecoou nos seus ouvidos. Inukashi normalmente obedecia-lhe prontamente, mas desta vez ignorou-a e continuou a questionar o rapaz.
"Como é que te chamas?"
O rapaz inclinou a cabeça ligeiramente. "Nezumi."
O seu nome, tão inesperadamente e prontamente dado, parecia pouco usual para um humano.
"Que tipo de nome é esse? É o teu nome verdadeiro?"
"Poderia dizer o mesmo do teu, Guarda-cão. Não é um nome apropriado, certamente."
"Hmph... bem, podes dizê-lo. Nezumi, hã. Pelo menos é fácil de decorar."
"Então planeias lembrar-te dele?"
"Erm... bem..." Inukashi sentiu-se como e estivessem a brincar com ele. Se não fosse envolvido depressa, seria sugado diretamente para a trama de Nezumi. Como um inseto apanhado numa teia de aranha, ficaria imobilizado até eventualmente definhar.
Perigo, perigo, perigo.
"Bem, até à vista, Nezumi. Se tivermos sorte, encontrar-nos-emos de novo."
"Se tivermos sorte."
Para o Inferno com a sorte. Vou certificar-me de nunca ver o teu rosto de novo.
Inukashi fez a mão deslizar atrás de si e abriu a porta, deslizando para o exterior. Assim que estava lá fora, correu escadas acima tão depressa quanto podia. Os seus pés congelaram a maio do caminho. A metade do lance de escadas, Inukashi deu consigo a olhar para trás. Podia ver a porta enferrujada.
"Nezumi, huh," murmurou.
Serei realmente capaz de me manter longe sem nunca te ver de novo?
Se tivermos sorte.
A deixa que tinha ouvido há apenas momentos atrás continuava a repetir-se na sua cabeça.
Se tivermos sorte.
Nós provavelmente vamos encontrar-nos de novo. Teve um sentimento repentino. Quase próximo de uma crença firme. Dali em diante, veria aquele rapaz outra vez e outra vez. Formariam uma conexão. 
O seu corpo quase recuou de nojo. Mas na base desses desgosto espreitava algo ligeiramente suave. Murmurou-o sob a sua respiração novamente.
"Nezumi, huh."

"Chamaste-me?"
Ouviu uma resposta estranhamente nítida.
Huh?
"Chamaste-me, Inukashi?"
Abriu os olhos. Era ofuscante.
A casa, atirada para longe num canto das ruínas, estava emersa em luz. Além do painel de vidro da janela ele podia ver um céu azul por trás de uma fenda nas nuvens. 
O azul ensopou as suas retinas.
Nezumi perscrutava o seu rosto. Os seus olhos encontraram-se. Os olhos dele eram do mesmo elegante cinza escuro da altura em que se viram pela primeira vez. 
"...O que... estás tu aqui a fazer...?"
"Huh? É assim que me tratas? Foste tu que me chamaste. Usando este tipo como mensageiro, lembras-te?" Um cão castanho abanou a cauda ao lado de Nezumi.
"C... Chamei? A ti? Psh, claro que não. Eu estava a chamar por..."
"Então por quem é que estavas a chamar?"
"Eu estava..."
"Inukashi, estás acordado?" Um monte de cabelo branco espreitou de trás de Nezumi.
"Shion."
"Sim, sou eu. Deves ter tido um tempo duro. Está tudo bem agora. Vamos deixar-te melhor num instante." Shion sorriu.
Inukashi quase se desfez em lágrimas. Parou a tempo de se agarrar a Shion e soluçar em voz alta.
Shion, eu estava assustado. Pensei que ia morrer. Sentia-me tão assustado, tão sozinho, e não sabia o que fazer. Por isso chamei-te. 
"Aqui, bebe isto." Shion ofereceu-lhe uma taça lascada. Continha um espesso líquido verde. O seu cheiro a terra fazia comichão no nariz.
"O que..."
"É uma erva medicinal. Encontrei num livro sobre medicina oriental nas prateleiras de Nezumi e pensei em dar-lhe algum uso. Estive à procura na floresta e encontrei um monte de coisas. Vai acalmar as tuas náuseas, e também te vai ajudar a recuperar da exaustão. "
"...Hã? Oriental?"
"É um tipo de medicina que foi passado por gerações no Este. O livro dizia que é suposto aumentar na globalidade a capacidade de cura do corpo. Vá lá, prova só."
"Tapa o nariz. Vai ficar mais suportável," disse Nezumi. Inukashi tapou o nariz tal como ele disse, e engoliu o líquido com um só gole. Não achou que soubesse assim tão mal. O sabor amargo que escorreu pela garganta abaixo parecia dar-lhe força. Exalou profundamente. 
Eles realmente vieram por minha causa. Atenderam o meu pedido de ajuda. Implorei por eles sem oferecer nada em troca.
Shion colocou uma mão na testa de Inukashi. Sabia bem e era tranquilizante. 
"É melhor ficares na cama por uns tempos. Não tens pneumonia, mas tens todos os sintomas de uma constipação. E anemia, também―"
"Se ficar preso à cama, os meus cães vão morrer de fome até à morte."
"Nós faremos algo quanto a isso. Eu vou tomar conta dos teus deveres da renda, e Nezumi mantém-te nutrido com comida. Certo?"
Nezumi encolheu os ombros levemente. "Claro, posso fazer algo quanto a isso. Mas deves-me por esta, Inukashi. Vou cobrar juros."
Inukashi esboçou um sorriso cansado de onde dormia. Os comentários de Nezumi, que nromalmente o irritavam profundamente, suavam inacreditavelmente gentis agora.
Passa-se algo seriamente errado comigo. Se eu chorar agora, quem sabe quanto se vão rir de mim depois. Se vou chorar, tem de ser quando apenas Shion estiver por perto. Segura-as. Lágrimas, não comecem a escorrer.
"Sabes, Inukashi," Shion sorriu ainda mais gentilmente. "Não acho que te tenhas de preocupar quanto à constipação, a avaliar pela tua força física. Mas a ferida no teu dedo do pé é outra história."
"Dedo do pé? Oh, o polegar direito, certo? Tem estado a doer há uns tempos." Inukashi estava sempre a magoar-se. A menos que fosse uma ferida consideravelmente grande, normalmente apenas lambia-a até ficar melhor.
"Está a inflamar," apontou Shion. "Se o deixar-mos assim, vai inchar com pus e provavelmente não serás mais capaz de andar. Então―"
"Então?"
"Terás de ser operado."
Shion tirou o mesmo kit de emergência. Não parecia mais velho do que quando Inukashi o vira pela primeira vez. 
"Shion, uh, o que estás―?"
"Vou cortar a ferida, extrair o pus, desinfeta-la, e cozê-la de novo. É isso. Vai terminar num flash."
Shion já estava a vestir luvas de borracha e a segurar um bisturi especial. Era uma pequena lâmina prateada, afiada até à perfeição. Inukashi sentiu a sua espinha congelar. 
"C-Cortá-la? Espera, espera um segundo, Shion. Aguenta. E―E quanto a analgésicos? Gás para dormir?"
"Não tenho nenhum."
"O quê que queres dizer, não tens―"
"Está tudo bem. Vai acabar depressa. Nezumi, podes segurar Inukashi em baixo? Certifica-te de que não se move."
"Entendido."
Nezumi manteve as ancas de Inukashi em baixo com ambas as mãos. A parte inferior do seu corpo estava completamente imobilizado.
"Imagino que isto seja uma novidade para ti, Inukashi," Nezumi sorriu de um modo estranhamente provocativo. "Mas Shion adora cozer pessoas. Pode parecer inocente, mas é um autêntico sadista."
"Que―pára com isso!" gritou Inukashi. "Estou assustado! Ajudem!"Agora estava além do poder de Inukashi fazer um ar corajoso. Estava perto de chorar. 
"Fica em baixo," disse Nezumi teimosamente. "Apenas dá ouvidos ao que ele diz. Além disso, até eu sou capaz de dizer que esta ferida é bastante séria. Podes estar a arriscar a vida se a deixares por tratar. Sei que Shion não o mencionou devidamente, mas talvez seja isto a estar por trás da tua doença."
"Não quero saber do que está por trás dela. Isso dói! Parem," gemeu. "Alguém me ajude! Shion, tem piedade!"
"Vai ficar tudo bem. Não te movas," Disse Shion. "Oh, olha, vês? Tinha este pus todo dentro. Surpreende-me que pudesses andar com isto. Deves ter ficado insensível à dor. Okay, está quase a acabar."
"Eu não fiquei insensível," Inukashi soluçou. "Owww, não cozas! Isso dói!"
"Não chores," disse Nezumi. "Bom menino. Vou dar-te uma recompensa."
Uma melodia suave fluiu dos lábios de Nezumi. Gentilmente comoveu o coração de Inukashi. Por um instante, Inukashi voltara a ser criança e estava a ser segurado nos braços de alguém. Estava livre do medo ou do sofrimento. Estava algures num sono tranquilo.
"Bom menino. Não penses em nada, apenas dorme. Nós vamos proteger-te com tudo o que temos. Não te vamos entregar ao Ceifador, aconteça o que acontecer. 
Vamos proteger-te com tudo o que temos.
Inukashi abriu os olhos e olhou para Nezumi. Depois, olhou para o perfil de Shion enquanto o rapaz estava agachado aos seus pés. As expressões de ambos eram graves. Numerosas manchas de suor marcavam a bochecha de Shion, e formavam gotas no seu queixo.
Vamos proteger-te com tudo o que temos.
Não era mentira.
Este mundo fora montado com mentiras, mas as palavras de Nezumi eram verdade. Mesmo que tudo neste mudo fosse falso, Inukashi sabia que podia acreditar naquelas palavras sem falhar. 
Inukashi não aguentava mais. As suas lágrimas transbordaram. Continuaram a correr. Sentia-se como se estivesse a afogar-se em lágrimas.
Idiotas, a fazer-me chorar.
Inukashi pressionou ambos os punhos contra os olhos, e chorou silenciosamente.
O céu continuava azul fora da janela.

Não podia deixar de comentar: morri de rir com a parte em que o Nezumi disse que o Shion era sadista, haha. Aguardem pelos próximos capítulos ^^

2 comentários: